A sexualidade da mulher árabe: uma luta de todas
Com a retomada do Afeganistão pelo Talibã, debates acerca dos direitos das mulheres na região do Oriente Médio tomaram conta das redes sociais. Através de uma luta de todas, aqui você compreende mais sobre a sexualidade da mulher árabe.
O que significa “ser árabe”?
Para compreender a mulher árabe é preciso entender que árabe e muçulmano não é a mesma coisa. Ser árabe significa pertencer ao grupo étnico que habita o Oriente Médio e a África setentrional, enquanto ser muçulmano significa ter fé na religão islâmica. De acordo com dados da Pew Research Center's Forum, o número de islâmicos no Oriente Médio contabilizam 91,2%.
Definir alguém como “Mulher árabe”, de acordo com texto publicado pelo Instituto da Cultura Árabe, é uma generalização que carrega uma série de problemas e é a razão primeira da intolerância.
“Não se trata de dizer que determinadas mulheres árabes em determinados países árabes não sejam alvo de submissão social, subjugo, desigualdade ou violência. Tampouco digo que diversos países árabes autoritários sejam isentos de problemas endêmicos ao seu tecido social e estrutura política. Ainda existem inúmeros problemas e questões a serem resolvidas no mundo árabe e muçulmano. O apedrejamento de mulheres no Paquistão e a mutilação genital no Egito devem ser condenados e criticados por todos. O estupro como arma de guerra no Sudão e seu vínculo com a economia local é um mal a ser erradicado. Contudo, meu objetivo é tão somente postular que as mulheres árabes não são essencialmente diferentes das brasileiras, europeias ou de quaisquer outras, especialmente no que tange à violência doméstica. E que inequidades sociais, econômicas e políticas devem ser endereçadas em qualquer lugar do globo, independente de etnia ou religião”, afirma Natalia Nahas Calfat para o Instituto.
A autora ainda afirma: “a mulher árabe é vítima sim da violência doméstica, do abuso sexual e da desigualdade de gênero. Mas ela não está desacompanhada nesta luta”.
Arwa Haider, jornalista de cultura para a BBC Culture considera que mulheres com opiniões fortes têm sido uma peça chave em diversas áreas da música árabe - da música popular ao pop comercial - em várias gerações e nações diferentes.
Além da indústria musical, outras mulheres árabes se destacam em movimentos sobre educação feminina e sexualidade, como o [movimento] sexual wellness.
Sexual Wellness para a mulher árabe
Se você é uma dessas pessoas antenadas que adora ler notícias e ouvir podcasts, provavelmente você já ouviu as buzzwords “sextech” ou “sexual wellness” por aí. Sexual wellness é o termo usado para identificar o movimento que inclui as particularidades, as perspectivas e os elementos próprios da natureza da mulher, como sexualidade, saúde íntima, ciclo menstrual, gestação, puerpério, menopausa, dentre outros. A tradução literal é “bem-estar sexual". Sabe a super tendência de skincare e autocuidado? Pois é, sexual wellness é o equivalente disso para melhorar e manter a nossa saúde sexual.
Enquanto um movimento que luta em prol da saude e bem-estar feminino, ele pretende tornar o mais natural possivel temas relacionados a sexo, prazer feminino, autoconhecimento sobre o seu proprio corpo e saude feminina.
Sexual wellness vai contra uma sociedade que considera o corpo feminino e seus aspectos um tabu.
Aliado a essa corrente, o empreendedorismo feminino desponta como um mercado bilionário: no momento, a indústria sextech já vale 30 bilhões de dólares. O Vale do Silício estima que até 2024 vai valer mais de 128 bilhões de dólares.
Essa estimação é bem realista, já que com a pandemia e as restrições de contato ao redor do mundo, vimos a demanda de produtos e serviços sextech crescer em escala global: aplicativos europeus como o Emjoy, Beducated e Ferly dobraram ou triplicaram o seu número de inscritos desde fevereiro de 2020.
Mauj
Preocupada com o bem-estar sexual e reprodutivo, Mauj é uma plataforma educacional online criada por um grupo de mulheres árabes. De acordo com as co-fundadoras, que preferem permanecer anônimas, elas estavam cansadas da desinformação, vergonha e estigma que rodeava o corpo feminino.
Mauj nasceu, em algum lugar entre Jeddah, Beirute, Dubai e Cairo, por uma necessidade de mais educação, informação, diálogo e aceitação em primeira mão em uma região onde somos policiados a cada marca de feminilidade.
Recentemente, a Mauj também lançou seu primeiro vibrador, o Deem.
“Acreditamos que nada sobre nossa saúde sexual e reprodutiva deve vir como uma surpresa, um mistério ou uma miséria total. De fato, quanto mais sabemos sobre algo, menos tememos, e menos tabu se torna”, assim descrevem as co-fundadoras em seu site oficial.
O objetivo, de acordo com Mauj, é desestigmatizar a conversa em torno do corpo das mulheres no mundo árabe e, ao fazê-lo, normalizar a saúde sexual e reprodutiva e permitir que as mulheres tomem decisões informadas por si mesmas.
O nome que dá título a plataforma significa "ondas" em árabe. Ele foi inspirado nos ritmos infradianos - um período superior a 24 horas por ciclo - que governam tanto o corpo feminino como o ciclo menstrual e as poderosas marés oceânicas. Mauj conota ondas de movimento, ondas de prazer, ondas de mulheres que se unem para impulsionar a mudança e virar a maré.
Em entrevista para a Vogue Brasil, as co-fundadoras esclareceram de que forma se dá a abordagem da plataforma e deram conselhos para meninas e mulheres árabes que estão navegando em busca de suas identidades.
Mauj para Vogue Brasil: Como você descreveria sua abordagem à educação sexual?
Mauj: “Pegamos fatos científicos e médicos complicados e os apresentamos de uma forma que seja fácil de entender, bonita de se olhar e em um formato digerível, porque sabemos que pode ser realmente intimidante. Era importante para nós ter uma rede de conselheiros, por isso temos ginecologistas, sexologistas e terapeutas que examinam nossas informações e nos apontam em diferentes direções. Com toda a honestidade, não temos um relacionamento saudável com nossos corpos. Estamos tentando mudar isso com Mauj e mostrar as nuances nas experiências das mulheres e a beleza do corpo feminino e da biologia. É natural sentir desejo, sentir-se sexual; você é um ser sexual, essas coisas são parte de quem você é.”
VB: Um dos meus elementos favoritos da plataforma Mauj é Hakawatiyya (que é a palavra feminina para "contadora de histórias" em árabe), uma série de vídeos em que mulheres árabes leem histórias em árabe enviadas por outras mulheres árabes que optam por permanecer anônimas. Você poderia me falar sobre o significado cultural de Hakawatiyya e este formato de narrativa?
M: “Um Hakawati — que é a palavra masculina para ‘contador de histórias’ em árabe — em nossas culturas era tradicionalmente conhecido como um homem que circulava e compartilhava histórias, transmitindo a moral da sociedade. Embora as mulheres sejam contadoras de histórias desde o início dos tempos, isso nunca foi a nível público. Em colaboração com [a agência de design com sede em Beirute] Studio Safar, queríamos virar de cabeça para baixo, recuperar essa parte de nossa cultura e fazer com que as mulheres assumissem esse papel. Tivemos a ideia de poder proteger o anonimato das mulheres fazendo com que estranhas leiam suas histórias em nome delas.
“É muito curativo poder compartilhar e ouvir as histórias uns dos outros e perceber que realmente não estamos sozinhos nisso. Podemos curar se falarmos sobre isso em um nível coletivo e tivermos a oportunidade de fazer perguntas sem medo e compartilhar coisas sem julgamento. Se tivermos essa educação desde cedo, as meninas podem ter uma vida mais plena.”
VB: O que vem a seguir para Mauj?
M: “Assinamos com uma rede de podcast incrível chamada Kerning Cultures para a segunda temporada de Hakawatiyya em um formato puramente de áudio. Além disso, um dos nossos sonhos é criar toda uma linha de produtos sexuais desenhados por mulheres designers árabes. Os produtos que criamos se alinham com nossa missão de permitir que as mulheres descubram seus corpos e a si mesmas; enquanto nosso conteúdo permite que eles aprendam, nossos produtos permitem que eles explorem.”
VB: Que conselho você daria para meninas e mulheres árabes que estão navegando em suas identidades?
M: “Alimente o relacionamento com você mesmo. Pode parecer mais fácil buscar respostas fora de você, mas quanto mais você aprender a se compreender, mais confortável ficará. Seja gentil consigo mesmo nessa exploração, não há jornada certa ou errada. Nada sobre você é vergonhoso. Seu corpo pertence a você e somente a você."
Mother Being
Mother Being é a primeira plataforma digital que oferece educação em árabe com uma forte comunidade online integrada de pessoas capacitadas e com as mesmas ideias para engajar e aprender umas com as outras.
A página foi fundada por Nour Emam como um meio de capacitar e libertar as mulheres na região do MENA -sigla na Língua inglesa para regiões do Médio Oriente e Norte da África- através da educação e conscientização sobre sua saúde reprodutiva e sexual.
O foco é criar um conteúdo fácil, informativo e educativo sobre o corpo e a saúde da mulher, acessível a todos no mundo de língua árabe. A única missão da Mother Being é armar as mulheres com as informações de que necessitam, independentemente das normas sociais, para aprender e tomar decisões informadas sobre seus corpos e sua saúde reprodutiva.
Nour Emam, além de CEO e fundadora da plataforma, é uma doula de fertilidade, de nascimento e pós-parto, assim como uma educadora de saúde feminina.
Seu trabalho abrange desde o trabalho individual com mulheres que se preparam para dar à luz, bem como o apoio durante e após o nascimento, até aulas em grupo sobre consciência do ciclo, preparação para o nascimento e recentemente acrescentou uma sessão mensal de discussão aberta sobre saúde reprodutiva e sexual para mulheres. A personalidade e a paixão de Nour fazem dela uma das personalidades online de maior impacto no mundo árabe ao redor da Saúde Sexual e Reprodutiva.
De acordo com o The New York Times: “De uma escolaridade formal sobre sexualidade mínima a inexistente em grande parte do Oriente Médio, e uma cultura patriarcal que deixou muitas mulheres árabes ignorantes e envergonhadas de seus próprios corpos, a Sra. Emam e um número crescente de ativistas construíram plataformas on-line para tentar preencher a lacuna.
Usando a Internet para contornar tabus sociais e a censura do governo, eles estão educando as mulheres árabes sobre seus corpos, quebrando mitos e desinformação, e em alguns casos mudando a vida das mulheres”.
No site você encontra conteúdos informativos em geral, cursos e um podcast. Você também pode encontrar a Mother Being no Facebook e no Instagram.
The Sex Talk Arabic
The Sex Talk Arabic é produzida por um grupo de mulheres árabes no Oriente Médio e expatriadas. O conteúdo da página atraiu dezenas de milhares de seguidoras no Instagram e no Facebook, os conteúdos variam de gráficos e vídeos que abordam a vida sexual feminina e a defesa da comunidade LGBTQI+. Em entrevista para o The New York Times, a fundadora diz: "Nosso principal objetivo é quebrar tabus e quebrar mitos", Fatma Ibrahim, 32 anos.
A página se descreve como “Uma iniciativa feminista interseccional que visa difundir a conscientização sobre saúde e direitos sexuais em árabe”. Você pode conferir as postagens no Instagram clicando aqui.
Dra. Sandrine Attalah e Dra. Deemah Salem
Dentre as páginas sobre educação sexual se destacam também produtoras individuais de conteúdo como a Dra. Sandrine Atallah, sexóloga em Beirute, Líbano e Dra. Deemah Salem, OB-GYN em Dubai, Emirados Árabes Unidos.
Ambas, resguardando suas comunicações próprias, estão no YouTube e no Instagram com conteúdos que visam retirar mitos e estereótipos sobre a sexualidade comuns em toda a região árabe. Um dos mitos combatidos é de que o uso de absorventes tira a virgindade de uma mulher.
Para você colocar na lista: filme “Perfect Strangers”
O primeiro filme árabe produzido pela Netflix se trata do remake do filme italiano “Perfect Strangers” (em tradução livre, “Perfeitos Desconhecidos”).
Sinopse: Sete amigos próximos se reúnem para jantar e em vez de socializar e se desconectar, eles decidem jogar um jogo que envolve compartilhar todas as ligações e mensagens recebidas dos celulares de todos à mesa em tempo real, indiscriminadamente. O que começa como uma brincadeira divertida rapidamente muda de tom à medida que segredos vêm à tona.
O filme tem sido alvo de críticas nos países médio-orientais. Parte da população espectadora alega que o filme desrespeitou os padrões morais ao inserir conceitos ocidentais fora de sintonia com o público, em sua maioria, religioso.
Em uma das primeiras cenas, uma mãe libanesa confronta sua filha de 17 anos depois de descobrir duas camisinhas em sua bolsa. Minutos depois, uma esposa egípcia escorrega sorrateiramente de sua roupa íntima pouco antes de sair para jantar com seu marido. Em outro momento (ALERTA SPOILER) um homem árabe, que faz parte de um grupo de amigos, revela-se gay.
Livro: We wrote in symbols - Love and Lust by Arab Women Writers
O livro "We Wrote in Symbols Love and Lust by Arab Women Writers", editado por Selma Dabbagh, pontua a natureza e o significado do sexo. Na literatura árabe, ele celebra as obras de 75 destas pioneiras ao longo de 3.000 anos e homenageia as obras de escritoras que sofreram exclusão, prisão, exílio e até a morte por terem escritos as obras compiladas em "We Wrote in Symbols Love and Lust by Arab Women Writers". Em suma, o livro amplia o protagonismo sexual feminino e as experiências de sexo das mulheres árabes através dos séculos.
O Lábios Livres apoia as mulheres através do respeito com seus corpos e exercício de sua livre-sexualidade. Aqui, a luta é de todas.