Quarentena
A pandemia devia ter iniciado na terça-feira de carnaval de 2018. Um pouco depois do nosso beijo na Praça São Salvador, no fim do bloco. Assim que ele avisou — como se fosse uma grande coincidência — que seu prédio ficava na rua detrás, eu corri para as minhas amigas, anunciando, um pouco alto demais, que ia transar. No momento em que elas comemoravam minha primeira foda de carnaval e ele escondia o rosto entre as mãos sorrindo, aí, sim, o primeiro caso do Brasil devia ter sido confirmado.
Fico imaginando outro desfecho para a nossa história se, enquanto caminhávamos os poucos metros até seu apartamento naquela terça-feira, os técnicos do Ministério da Saúde já estivessem reunidos montando protocolos emergenciais. Aeroportos e portos podiam estar cancelando viagens internacionais e limitando o número de passageiros enquanto tirávamos a roupa com a maior naturalidade, como se fôssemos velhos amantes.
As medidas de controle da pandemia deviam ter sido decretadas um pouquinho antes dele ter saído de dentro de mim, deixando um rastro pegajoso na minha bunda. Pensando bem, devia ter se iniciado ainda antes, quando me perguntou se eu tinha gozado.
Enquanto dizia “vou te mostrar como você pode saber se gozei” e pegava sua mão direita, o governador do Rio de Janeiro devia estar usando sua própria mão, não sei se direita ou esquerda, para assinar um decreto de lockdown.
O tempo em que ele me masturbou teria sido mesmo em que os poucos comércios abertos fechavam suas portas, inclusive a loja Americanas que servia de atalho para o meu ponto de ônibus. Nem perceberíamos os ruídos enquanto eu gozava, achando que era a última vez, e segurava sua mão, antes que escapasse, para a colocar novamente sobre minha buceta. Sente, eu dizia.
- Sentiu?
- Que louco!
No mundo ideal, as pessoas já estariam todas abrigadas em suas casas quando ele colocava a camisinha para me comer de novo. Os precavidos deviam estar fazendo lista de compras em aplicativos de delivery, enquanto eu apoiava minha cabeça na testa dele e tentava segurar seus cabelos. Como pode ser tão fácil? Como pode um estranho ser tão familiar?, pensava.
Enquanto o contato físico devia estar sendo evitado em todas as ruas e o Largo do Machado ficando cada vez mais deserto, eu me sentia apenas ciente do nosso fedor de álcool e suor. Todo mundo já devia estar tentando lembrar de lavar as mãos por vinte segundos, do jeito correto, e a gente com glitter ainda grudado no corpo, alguns do dia, outros tantos que se acumulavam desde sexta. Eu, suava mais um pouco e gemia, me perguntando se era sempre gostoso assim.
No apartamento ao lado, a vizinha assinaria um programa de treinos online de 14 dias para não perder a forma durante o isolamento. Enquanto nós dois permanecíamos ainda completamente esquecidos das barrigas inchadas de cerveja e Skol Beats, que acompanhavam o balançar do encontro dos nossos corpos.
Depois que ele gozou no meu cu e saiu de mim deixando um rastro pegajoso, pensei que o mundo não acabaria mais. Tive uma crise de riso, lhe disse para jogar a camisinha fora e perguntei se podia tomar um banho.
A OMS devia ter acionado todos os alertas antes dele gozar no meu cu e sair de mim deixando um rastro pegajoso, antes deu ter uma crise de riso e, em seguida, pedir para tomar um banho. Ou mesmo antes de terminar de me ensaboar e conseguir conter o riso. E, enquanto eu tentava vestir as roupas minúsculas fluorescentes que tinha usado de fantasia naquele dia, ele deveria ter ligado a TV para que finalmente nos tornássemos ciente do novo vírus.
A pandemia devia mesmo ter se iniciado naquela terça-feira de carnaval. Para que eu pudesse ter ficado mais, sem ter medo de parecer a única interessada. Para que ele não tivesse outra escolha, senão ficar quarentenado comigo.
De início, eu ficaria preocupada com o estado da minha casa e as comidas na geladeira. Mas, eventualmente, diríamos consternados: é por um bem maior! Eu me daria conta das minhas roupas e ele prontamente se adiantaria oferecendo algumas camisetas.
- Mas também pode ficar sem nada, se quiser – acrescentaria – Não vamos a lugar nenhum.
E eu riria e sentiria um leve arrepio ao lembrar da nossa transa de pouco tempo atrás. Depois de encontrar algo para comer e mais umas cervejas da última leva do carnaval, nós decidiríamos descansar. E deitaríamos muito constrangidos de dividir a mesma cama novamente, sob circunstâncias completamente diferentes.
Antes de pegar no sono, perguntaria se não preferia que eu ficasse no sofá e ele diria que não, que havia espaço suficiente na cama para nem precisarmos nos tocar. E eu ocuparia o cantinho esquerdo, imbuída da missão de não tocá-lo durante a noite, mas acordaria com o cheiro da sua pele e perceberia que acabamos dormindo abraçados.
Nos próximos 14 dias, estranharíamos a intimidade crescente, os pequenos sinais de que éramos cada vez menos desconhecidos. Eu saberia dizer onde ele havia deixado sua chinela por último e ele descobriria que sempre pego no sono depois do almoço. Saberíamos a hora de ficar calados e dar espaço, mas diariamente procuraríamos o corpo do outro.
Pelo computador, pela TV e pelo celular, veríamos que a aparência do mundo havia mudado. Pessoas compravam máscaras e outros apetrechos de proteção para desbravar a rua. Eu, desprotegida, desbravaria apenas as linhas do corpo dele. Todas as ondulações, as formas e os relevos dos ossos. Beijaria a sua bunda, faria contas de quantas polegadas tinha de um ossinho do quadril ao outro. Passaria o dedo pelo seu pau, deixaria cair no saco, contornaria até o períneo. Ele riria e diria “aí não”, mas não tentaria escapar.
- Um dia você tem que deixar
- Um dia...
- Antes da pandemia acabar, eu daria a deadline
E então ficaríamos pensativos. Meditando sobre o que seria ao fim daqueles 14 dias, se voltaríamos ao normal. Se seríamos apenas uma trepada de carnaval normal, com uma rotina normal, problemas normais, distâncias normais, receios, bloqueios e indisponibilidades normais.
A pandemia deveria ter se iniciado naquela terça-feira de carnaval de 2018. Para que ele não me dissesse que tinha medo de relacionamentos ou que não poderia mais me ver. E para que eu não pegasse o ônibus, depois de atravessar a Americanas, sem dizer que, para mim, mesmo aquela única trepada fora dos protocolos sanitários tinha sido especial. Talvez não conseguisse mencionar tudo, mas ainda assim poderia tentar dizer que, com ele, tinha experimentando algo diferente, que era estar completamente à vontade com o meu corpo.
Mas a pandemia veio em 2020. E nem sei se posso ter esses pensamentos egoístas diante da catástrofe. Mas tenho ouvido muitos relatos de amigos que estão se aventurando para conseguir algumas trepadas e me espantei ao perceber que, mesmo depois desses seis meses de isolamento, não me sinto animada a sair para transar. Talvez, desde 2018, eu não queira sair. A verdade é que só queria ficar.