Emma Morley e o sacrifício feminino na narrativa romântica

Assisti a Um Dia pela primeira vez em 2019, sem grandes expectativas. Lembro de ter sido tocada pela estética do filme, pela atuação sensível da Anne Hathaway — que, aliás, é uma das minhas atrizes favoritas — e pela trilha sonora melancólica que dava o tom ideal para aquela narrativa que, à primeira vista, parecia romântica. No entanto, ao revisitar o filme em 2024, motivada pelo lançamento da série homônima, minha percepção foi completamente diferente. É fascinante como a nossa leitura de uma obra muda à medida que nós mesmos mudamos, e talvez seja essa a beleza mais profunda de consumir arte: ela nunca é fixa. Ela nos espelha, nos provoca, e muitas vezes nos confronta.

Figura 1 – One Day .Fonte: Pinterest.

Hoje, com outro olhar, vejo que por trás da fotografia delicada, dos enquadramentos nostálgicos e da química inegável entre os protagonistas, há uma narrativa problemática que se disfarça de romance. A história de Emma e Dexter, contada ao longo de duas décadas, é muitas vezes lida como uma saga de amor incompreendido, de encontros e desencontros do destino. Mas, ao olhar mais de perto, percebemos que o filme reforça, ainda que de forma sutil, estereótipos de gênero que perpetuam relações desequilibradas, baseadas na idealização do sofrimento feminino e na romantização da imaturidade masculina.

Emma, interpretada com doçura e firmeza por Hathaway, é a clássica mulher “cuidadora”: inteligente, generosa, paciente e, acima de tudo, disponível. Ela representa o arquétipo da mulher que ama com profundidade, mas que também se anula em nome desse amor. É a mulher que espera, que compreende, que acolhe, mesmo quando não deveria. É a mulher que, ao longo dos anos, aceita estar sempre em segundo plano, alimentando a esperança de que, um dia, o homem que ama irá finalmente vê-la como ela realmente é. Já Dexter, por outro lado, é o típico homem branco, hétero, privilegiado, que se entrega aos excessos da juventude, à arrogância e ao egoísmo, sempre com a desculpa de que está “se encontrando”. Ele é o espelho de uma masculinidade tóxica que a cultura pop insiste em tratar com tolerância — o cafajeste carismático, que erra, mas é perdoado porque, no fundo, tem um "bom coração".

Essa dinâmica é dolorosamente familiar para muitas mulheres: desde cedo, somos ensinadas a tolerar. Acreditamos que homens amam “à sua maneira”, mesmo que essa maneira nos destrua aos poucos e, não rara as vezes, acaba em feminicídio. O que o filme faz, portanto, não é apenas contar uma história de amor frustrado, mas reiterar um roteiro cultural antigo, onde a mulher precisa suportar tudo para quem sabe, ser recompensada no final com o reconhecimento tardio do homem que a negligenciou por anos.

E quando esse reconhecimento finalmente acontece, o roteiro decide tirar Emma da equação — ela morre, de forma abrupta, quase como uma punição por finalmente viver seu amor. O que sobra, então, é o luto masculino como centro da história. Dexter, mais uma vez, torna-se o protagonista da dor. Ele é salvo, redimido e reconstruído pela lembrança da mulher que o amou incondicionalmente. No fim, o filme não é sobre Emma. É sobre o impacto de Emma na vida de Dexter. A mulher como mártir emocional, como catalisadora da evolução masculina. Ela precisou morrer, para ele se encontrar e se tornar um “homem melhor”.

Figura 1 – One Day .Fonte: Pinterest.

É uma pena que uma obra visualmente tão bonita e potencial emocional genuíno, caia na armadilha de reproduzir discursos ultrapassados sobre o amor e os papéis de gênero. Um Dia poderia ser um retrato honesto sobre os encontros que nos transformam, sobre a efemeridade da vida e as oportunidades perdidas, o que em partes, até é. Mas o peso simbólico da relação desigual entre seus protagonistas grita mais alto. Por trás das belas paisagens, da trilha comovente e dos diálogos poéticos, há uma história que, infelizmente, valida o sofrimento feminino como parte natural do amor verdadeiro.

Apesar de ser uma obra que encanta os olhos, ao ser revisitada com um viés mais crítico, revela uma narrativa frágil, que perpetua padrões que deveríamos questionar, não romantizar. Às vezes, para enxergar a beleza de um filme, é preciso saber separar estética da mensagem por trás — e nem sempre o que nos emociona é, de fato, o que nos faz bem.