Mês da visibilidade lésbica: será que todas as lésbicas estão realmente à vista?

Trans e lésbica, sim senhor! Auto aceitação e estereótipos dentro do movimento LGBTI

por Natália Rosa, criadora de conteúdo no PraticamenteInofensiva

Como uma lésbica que, por acaso, também é uma mulher transgênero, posso afirmar que a resposta é não. É isso mesmo que você acabou de ler: a pessoa que vos escreve é uma mulher trans lésbica, e eu vou te contar como é navegar com estranheza e insolência nos mares da diversidade.

Diferenças entre gênero e sexualidade

Por vezes, feministas alinhadas ao radfem (feminismo radical, conhecido pela exclusão e abominação às mulheres trans) me questionam “o que é ser mulher?”. Creio que esperam que eu responda com algum tipo de estereótipo visual ou comportamental. De fato, apesar de ser mulher, não tenho uma resposta clara para essa pergunta – e imagino que a própria questionadora também não.

O que posso dizer é que não se trata de nascer com útero e vagina. Vir ao mundo com essa configuração corporal significa apenas que você possui uma anatomia feminina, mas não é um indicativo exato da forma que alguém percebe o seu gênero. Caso contrário, milhões de pessoas não seriam trans. Homens transgêneros, por exemplo, nascem com ambos e nem por isso se percebem como menos homens – apenas possuem um corpo diferente do padrão cis.

Cis é a forma reduzida do termo cisgênero, característica da pessoa que possui concordância entre seu gênero e o corpo em que nasceu. Nós, transgêneros, basicamente decepcionamos nossos pais (brincadeiras à parte) ao informá-los que somos de um gênero diferente do esperado. Se você pertence ao “esperado”, você é cis.

Esse senso de identificação é chamado de gênero, e dentro dele eu me entendo como mulher. A confusão em relação à existência de mulheres trans lésbicas costuma começar por aí, principalmente por quem não conhece o universo LGBT+ de perto.

A lógica é mais ou menos assim: se eu sou uma mulher, necessariamente devo sentir atração por homens... certo? A resposta é não. Mulheres trans são mulheres e, assim como as cis, também podem ser lésbicas, bissexuais e possuir orientações sexuais diversas.

Acredito que a raiz da confusão habita em um raciocínio ainda mais primitivo: a de que a mulher trans é como um “homem homossexual, mas tão homossexual, que quer ser como uma mulher”. Bem, se você pensava isso, sinto te decepcionar, mas nós somos mulheres e ser mulher não é sinônimo de sentir atração por homens (graças ao bom Deus).

Transição: a arte de ser eu mesma

Hoje, sou reconhecida como mulher em todos os lugares que vou: da padaria ao aeroporto, passando pela pista de skate. Mas nem sempre foi assim.

Na verdade, minha história começa em 1990, no dia 2 de dezembro às 10:00 a.m., na cidade de Porto Alegre/RS (se descobrir algo interessante no meu mapa astral, sinta-se à vontade para compartilhar comigo). Atualmente, tenho 30 anos, mas comecei a questionar meu gênero por volta dos 6 ou 7, quando a pureza da descoberta sobre si própria é tão inocente - tão incontaminada de conhecimentos ou informações sobre gênero e sexualidade - que parece etérea nas profundezas da memória.

Explicando de forma mais clara, eu sentia que pertencia ao outro lado do parquinho: o das meninas, e não dos meninos. E o interessante é que essa percepção precoce não era embasada em estereótipos populares, afinal, eu sempre gostei de esportes como skate e futebol, e boneca nunca foi o meu brinquedo favorito. Eu também sempre apreciei maquiagem, a qual roubava da minha irmã mais velha, mas esse hobby gatuno nunca foi um fator definitivo para estabelecer meu gênero. Era apenas um hobby, entre tantos outros.

Porém, a minha incapacidade de explicar esse sentimento aos adultos fez com que isso virasse um segredo, guardado a sete chaves na minha mente infantil, e transformar essa característica em algo secreto foi a maior armadilha que caí: por 24 anos, acreditei que ser uma mulher nascida em um corpo masculino era um erro, fazendo com que eu escondesse minha identidade até estar, literalmente, à beira do suicídio.

Mas onde entra o “lésbica” nessa história? Bem, exatamente onde costuma entrar: na puberdade. A descoberta em relação ao meu gênero veio bastante cedo, já a atração por meninas surgiu um pouco depois, por volta dos 12 anos, assim como é para grande parte das pessoas.

Portanto, isso resume a minha história até o início da transição aos 25 anos: uma menina que sente atração por meninas, enjaulada em uma identidade masculina. Se parece difícil de absorver para você, imagine para mim, aos 18 anos, enquanto orava a Deus todos os dias antes de dormir para que esse pesadelo acabasse e eu simplesmente pudesse acordar como uma “menina normal”.

E como que destinada a morrer ou viver como Natália, tomei a decisão mais difícil da minha vida: enterrar uma vida de interpretação de um personagem masculino em prol da minha liberdade. E assim, após algumas postagens em redes sociais e conversas íntimas com amigos e familiares, eu nasci.

O choque foi grande. A imprevisível notícia parece ter iniciado, em todos os envolvidos, um processo de luto e reconhecimento que demoraria mais de um ano para se transformar em aceitação e consciência. Dizem que quem é transgênero nunca transiciona sozinho: todos que realmente te amam precisarão aprender a conviver com uma nova pessoa, que provavelmente possui hábitos, costumes, roupas e pensamentos diferentes.

No meu caso, deixei de lado muita coisa. Boa parte do que conheciam de mim não era mais do que comportamentos construídos a fim de saciar a sede de normalidade de quem convivia comigo. Eu, Natália, a mulher por trás do personagem, precisei de mais do que doze meses para me reapresentar.

E então você pode estar se perguntando novamente: onde entra o “lésbica” nisso? Na verdade, ainda não entra. Essa parte da minha vida envolveu fundamentalmente a revolução quanto ao meu gênero, não quanto a minha sexualidade. Sempre fui lésbica. Sempre senti atração por mulheres. A diferença é que antes eu era lida socialmente como homem, e hoje sou lida como quem realmente sou.

Porém, seria uma enorme mentira dizer que minha vida romântica e sexual não mudou quase que completamente, então deixa eu te contar algumas coisinhas sobre ela.

O amor trans lésbico

Sou casada há aproximadamente 3 anos. A pessoa com a qual sou casada, Mariana, se apresentou a mim como uma lésbica cis, porém, há pouco mais de um mês, se assumiu como uma pessoa não-binária - para vocês verem que também não estou imune a revelações chocantes.

Para quem não sabe, uma pessoa não-binária é aquela que não se identifica nem totalmente como homem, nem totalmente como mulher. Porém, isso não impactou minha atração por ela (que também utiliza o pronome “ele”). No último mês, também aprendi uma informação nova: dentro da definição de “lésbica”, está inclusa a atração por pessoas não-binárias alinhadas ao neutro ou feminino, o que inclui Mariana.

De qualquer forma, somos um casal feliz, com 10 pets e que mora na praia. E sim, isso é tão bom quanto parece. Socialmente, sofremos medos semelhantes aos de casais lésbicos cis: evitamos andar de mãos dadas e mostrar afeto em certos locais, por exemplo.

Uma particularidade da nossa relação é a curiosidade que os outros tem sobre como fazemos sexo, muitas vezes sugerindo que eu seja a ativa da relação (afinal, eu nasci com um pênis, e pênis servem para penetrar, não?). E o mais irônico é que Mariana é uma lésbica desfem, ou seja, que não performa feminilidade e que, por preferências pessoais, não possui grande disposição para ser passiva, o que deixa todos ainda mais confusos.

O que posso dizer é: parem de presumir coisas com base na aparência e lembrem-se que o corpo não é feito apenas de órgão genital: temos dedos, línguas e todo um universo físico para contemplar o prazer.

Preconceito dentro da comunidade LGBTI+

Um dos assuntos mais polêmicos que circundam a minha vivência como mulher trans e lésbica é o preconceito. Porém, não aquele que costuma vir das pessoas do topo da pirâmide dos privilégios (os héteros cisgêneros), mas sim o que tem origem na própria comunidade LGBT+.

Acredito que esse tipo de discriminação é tão frequente pelo fato de que ser trans é uma questão de gênero, enquanto ser homossexual ou bissexual são questões de sexualidade. Graças a isso, as pessoas LGB não compreendem, necessariamente, a realidade da pessoa trans, mesmo fazendo parte da mesma comunidade. Isso faz com que estejam sujeitas a promoverem ideias transfóbicas da mesma forma que pessoas cis e hétero fariam.

Desde que me assumi, conheci de perto homens gays transfóbicos, que deslegitimam o gênero e os direitos de pessoas trans, da mesma forma de já me deparei com lésbicas cis que estimulam o ódio às mulheres trans, homens trans e pessoas não-binárias. Infelizmente, é reflexo de uma enorme falta de reflexão e empatia, pois ao mesmo tempo que tentam nos empurrar para a margem da sociedade, sua própria existência é desprezada por outra parcela de pessoas homofóbicas.

O lado bom é que as pessoas LGB com essa mentalidade são minoria, portanto, ainda consigo me sentir em casa e navegar tranquilamente dentro da nossa sigla.

A importância da representatividade nas mídias sociais

Não tenho dúvidas sobre a relevância do meu conteúdo. Digo isso porque foi exatamente a falta dele que me trouxe tantas dificuldades no início da minha transição. Havia literalmente uma única mulher trans e lésbica no YouTube, e que não produzia conteúdo frequentemente.

Foi assim até eu surgir com o canal Praticamente Inofensiva. Por lá, fiz dezenas de vídeos sobre essa vivência específica e algo curioso aconteceu: muitas outras me revelaram que se identificavam da mesma forma que eu, porém, que não haviam conhecido ninguém mais assim.

Nunca vou esquecer a primeira vez que vi a minha vivência representada de forma vívida: a personagem Nomi, da série Sense8 da Netflix, que também é trans e lésbica. O pensamento que tive foi algo como “eu existo, e poderia ser eu ali na história”. Nunca esqueci esse dia, nem a série, que é maravilhosa, e se tornou uma das minhas favoritas até hoje.

A maior prova do impacto dessa personagem é o fato de que ela despertou em mim a vontade de causar essa mesma sensação em outras mulheres trans e lésbicas: você é real, e você tem um lugar no mundo.