opinião por Stephani Santoro, artista e criadora de conteúdo sobre representatividade e visibilidade
No mês de agosto nós comemorarmos a Visibilidade Lésbica. Um mês para relembrar que estamos aqui, celebrando nossas conquistas, lutando por nossos direitos e trazendo diversas reflexões sobre a temática. E dessa vez, vamos falar sobre a representatividade lésbica no audiovisual (ou a falta dela).
Cinema e heteronormatividade: a falta de representação lésbica nas telas
Não é segredo para ninguém que vivemos em uma sociedade em que os homens mantêm o poder predominante nas funções de liderança e autoridade. É óbvio que no cinema não seria diferente. Entre os 100 melhores filmes lançados em 2019, apenas aproximadamente 11% eram de diretoras mulheres. E aí você pode pensar: “ah, mas é por falta de talento”. E aí eu te respondo: não, isso acontece por falta de oportunidade.
“Ok, e o que a heteronormatividade e a representação lésbica tem a ver com isso?”, você pode estar se perguntando. Mais uma vez, eu digo: tem tudo a ver. Mas antes de ligar os pontos, vou explicar para quem não sabe o que é a heteronormatividade.
Se você jogar no Google “o que é heteronormatividade”, a Wikipedia vai te dizer que: “é um termo usado para descrever situações nas quais orientações sexuais diferentes da heterossexual são marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas sociais, crenças ou políticas”.
Deixe eu exemplificar com algo mais visual. Você é uma criança de 4 anos, não tem noção alguma sobre sexualidade, atração e nem nada dessas coisas, pois isso tudo só será desenvolvido lá para os seus 12 anos de idade. Mas, mesmo assim, seus pais, ou os pais do seu amiguinho, gostam de fingir que vocês são um casalzinho. A imagem do primeiro amor forçada por adultos.
Outro exemplo até mais rápido de visualizar é: de todos os conteúdos audiovisuais que você viu no período da sua adolescência (isso inclui novelas, filmes, propagandas de tv, séries, desenhos...), quantas mulheres mantinham relação afetiva ou sexual com outras mulheres?
Todos nós desde muito novos temos a visão de que a heterossexualidade é uma norma que não pode ser quebrada. Pois se for, você estará em um ambiente completamente desconhecido e contra as práticas sociais, religiosas ou políticas citadas anteriormente.
Você consegue agora perceber como os temas se ligam? Se nós somos uma sociedade heteronormativa, o que podemos esperar do cinema é mais heteronormatividade. E a falta de representatividade lésbica nas telas acontece justamente por isso. Afinal, como você espera que homens heteronormativos representem boas e verdadeiras relações lésbicas no audiovisual?
Como a indústria pornô contribui com os estereótipos sexuais
Antes de abordar um pouco o como são representados os relacionamentos entre mulheres no audiovisual, é importante entrar na temática da indústria pornográfica.
O primeiro ponto é: essa indústria sem regulamentação lucra BILHÕES anualmente. A falta da educação sexual faz com que jovens entrem em contato com esse tipo de conteúdo muito cedo e aprendam de uma forma extremamente NÃO educativa o que é o sexo e como tratar uma mulher.
Um pré-adolescente que busca “sexo” no Google, por exemplo, terá acesso rápido a conteúdos que “ensinam” de uma forma bruta e agressiva o que fazer e o que os homens sentem em determinada situação de liderança, ao invés de conteúdos de fato educativos e reais. É assim que homens se desenvolvem: se tocando através da visão violenta e cruel de como tratar mulheres. Consequentemente, é também assim também que muitas mulheres acham que é uma relação sexual.
De acordo com o estudo “Os Efeitos da Pornografia nos Relacionamentos Interpessoais” feito pela pesquisadora e psicóloga Ana Bridges, da Universidade do Arkansas, homens que consumiram e consomem pornografia tendem a “demonstrar falta de empatia por vítimas de estupro; acreditar que mulheres que se vestem ‘provocativamente’ merecem ser estupradas; mostrar raiva contra uma mulher que flerta mas não quer fazer sexo; experimentar queda substancial no desejo por suas parceiras; demonstram interesse crescente em coagir parceiros em algum tipo de sexo não desejado.”
O site PornHub fez um levantamento dos fetiches mais procurados de 2007-2017 e adivinha qual era o fetiche em 2016 mais procurado e com mais acessos? Pois é, o sexo lésbico. De acordo com o site, o termo mais procurado foi a posição da “Tesoura”, que inclusive já estava em um consumo frequente desde 2014, porém 2016 foi ano que representou o ápice de procura.
Sexo lésbico para a indústria pornográfica é um fetiche. Tudo é montado de homens para homens. E esta é a base do que os homens (e até muitas mulheres) acreditam que seja um relacionamento sexual entre mulheres. A mulher como produto de satisfação masculina.
Entre os estereótipos femininos mais comuns encontrados nesses vídeos estão: a jovem pura (muito ligado à mulher adolescente e sem experiência); mulheres completamente sem pelo (o que fortalece a visão da mulher infantilizada); a mulher que aceita tudo o que o homem faz (mesmo as coisas agressivas); sexos performáticos (se você prestar atenção nesses você consegue até roteirizar passo a passo da relação sexual), e muito muito muuuito mais.
O mais importante é saber que tudo é extremamente falso. E faz mal não só para as mulheres, e sim para todos que consomem este tipo de conteúdo. Sempre terá frustração quando comparar o seu relacionamento sexual com qualquer pornografia, porque pornografia não é real.
Representação sexual afetiva entre mulheres nos filmes
Lembra que um pouco acima aqui no texto eu falei sobre a direção de homens heteronormativos representando relações lésbicas no cinema? Bom, isso nos leva para mais uma pergunta: onde você acha que homens heteronormativos buscam referências sobre o relacionamento sexual entre duas mulheres?
Sim, na pornografia.
Esta é geralmente a única base visual que existe para que homens “saibam” como funciona uma relação sexual lésbica. Mesmo que não consuma atualmente, o conteúdo que ele já acessou ainda vive internamente e é assim que ele acredita que é esse tipo de relação. O que é completamente equivocado.
O filme de 2013 “Azul é a Cor mais Quente” dirigido por Abdellatif Kechiche e roteirizado pelo mesmo junto de sua esposa (Ghalya Lacroix), possui diversas polêmicas. Para quem nunca assistiu, este filme conta, resumidamente, a história do período de descoberta e entendimento da sexualidade de uma adolescente (Adèle) após conhecer outra garota.
A grande polêmica é uma longa e cansativa cena de sexo com duração de sete minutos entre as personagens principais. Nos bastidores da cena, as atrizes foram assediadas, ficaram horas e horas com próteses da vagina repetindo movimentos performáticos que provocaram dormência e até sangramento. As gravações desta cena duraram em torno de 10 horas consecutivas. As atrizes ainda falaram sobre o diretor querer mostrar a relação sexual das duas de uma forma violenta e humilhante. E agora eu destaco esta frase dita por uma das atrizes à revista "Esquire", em 2013:
"O diretor fazia as atrizes rodarem cena de sexo por horas, com as vaginas sangrando. Muitas vezes, ele enfiava o próprio dedo nas vaginas e seios das duas para mostrar como fazer."
Este é um exemplo simples de filme dirigido por homem e mascarado de representatividade para satisfazer os desejos puramente masculinos através do fetiche. O filme ganhou muitos prêmios, foi aclamado pela crítica e até hoje é um dos filmes favoritos de muitas mulheres lésbicas. Mas, não é um filme interessante para mencionar representatividade.
Você pode trocar "Azul é a Cor mais Quente" por "Margaritas com Canudinho". Um filme de 2014, hindi indiano dirigido por uma mulher (Shonali Bose) e que conta a história de uma adolescente indiana com paralisia cerebral que se apaixona por uma ativista cega. A história é quase a mesma que em Azul é a Cor Mais Quente, a grande diferença é a real representatividade e o filme ser feito para todos, e não só pra homens.
É importante dizer que o problema não é o homem dirigindo filmes com representatividade lésbica. E sim, homens dirigindo filmes com representatividade lésbica em que a trama central do filme é sobre a sexualidade da personagem. E o problema também não é só condicionado à direção, pois o audiovisual é formado por uma grande equipe. O trabalho do roteiro, por exemplo, é um ponto necessário para a direção do filme. Pegando ainda o exemplo de Azul é a Cor Mais Quente, mesmo que o filme fosse baseado em um livro, o roteiro do filme ficou nas mãos do diretor homem e de sua esposa. É necessária ajuda verdadeira da comunidade retratada (nesse caso, a lésbica) para que o conteúdo seja real. Existem muitos filmes com direção conjunta por aí, e não é o fim do mundo pedir ajuda pra quem sabe das coisas.
O filme "Carol" (estrelado por Cate Blanchett), por exemplo, foi dirigido por um homem (Todd Haynes), adaptado do livro de Patricia Highsmith. E o filme não gira em torno da sexualidade de Carol. Não há problema nos bastidores e nem nas telas. Ganhador de vários prêmios e um marco importante para a visibilidade lésbica.
Outro lado importante pra abordar sobre o relacionamento sexual entre mulheres nos filmes é a falta de saúde sexual. Existe outro texto aqui no blog que fala sobre tudo o que você precisa saber entre o sexo entre mulheres e eu indico você dar uma lida, caso ainda não o tenha. Mas tudo falado ali sobre segurança é algo que não é abordado nos conteúdos audiovisuais.
Mulheres lésbicas sofrem com a falta de auxílio em saúde sexual. Existem muitos profissionais perdidos, sem conhecimento o suficiente e que não prestam nenhuma assistência para pacientes mulheres que se relacionam com mulheres. E o audiovisual, como uma forma de facilitar o acesso à informação através das vivências das personagens fictícias também não oferece a assistência necessária. Ou pior, muitas vezes o audiovisual até “vende” a ideia de que não é necessário nenhuma proteção ou cuidado nesse tipo de relacionamento, já que não é possível engravidar. Como se engravidar fosse o único cuidado para se ter, sendo que existem diversas DSTs por aí.
Para finalizar, é importante ressaltar que, diferentemente do que é mostrado em grande parte dos conteúdos audiovisuais, a relação sexual afetiva entre mulheres não é só sexo. É muito recorrente filmes que abordam SÓ a sexualidade da personagem. Como se nossa sexualidade fosse algo que nos dominasse. É sempre importante dizer que toda mulher lésbica (na verdade toda e qualquer pessoa) é muito mais do que sua sexualidade, isso nos complementa, mas não nos define.
E um segundo ponto importante é: a quantidade de finais tristes e em aberto que os filmes representativos têm. Sempre relacionando a vida de uma mulher que ama mulher a um romance fracassado (seja através da morte ou separação), e tornando o elemento surpresa de um filme em um clichê.
Falta de visibilidade com casais sáficos no audiovisual
Se eu te perguntar agora: me fala três filmes de comédia romântica em que a gente tenha como personagens principais um casal formado por um homem e uma mulher. Com certeza você pode lembrar até mais de três. Agora fala pra mim três filmes de comédia romântica com um casal de mulheres lésbicas.
A forma que esses conteúdos chegam é diferente. A indústria cinematográfica entrega mais filmes com casais heterossexuais, por vivermos em uma sociedade heteronormativa. Enquanto isso, os filmes com representatividade lésbica precisam lutar por espaço para serem divulgados e vistos da mesma forma.
Uma das barreiras da visibilidade é o acesso. Nós dependemos muito de serviços de streaming (que na grande maioria cancelam com frequência e tiram do catálogo muitos conteúdos com representatividade lésbica), de pessoas que disponibilizam filmes/séries legendados (já que outra barreira é a língua) e de blogs aleatórios ou comentários perdidos pela internet que indicam filmes para você assistir.
Essa falta de acesso e divulgação faz com que os filmes não cheguem à grande maioria e assim, não são conhecidos e assistidos. O que complica a possibilidade de que mais pessoas vivenciem outras realidades através do audiovisual.
O cinema lésbico brasileiro, por exemplo, sofre seriamente desses problemas de acesso. É como se toda essa vertente do cinema não existisse, quando na verdade existe sim, e entrega ótimos filmes pouquíssimos conhecidos.
Indicações de comédias românticas lésbicas: Nunca fui santa, Fora de Série.
Indicações de filmes brasileiros lésbicos: Flores Raras, Perfume da Memória.
Importância da representação lésbica no cinema
Toda essa falta de representatividade fez (e faz) com que adolescentes, como eu por exemplo, crescessem consumindo conteúdos sem uma verdadeira representação. A falta disso faz com que a gente fique cada vez mais condicionados a heteronormatividade compulsória. Mulheres lésbicas que entram nessa norma demoram a perceber que estão presas a ela e demoram a entender suas sexualidades.
A sensação de poder assistir algo que de fato você consiga se identificar é uma energia surreal. E falo isso pensando apenas na temática do filme, mas se a gente foca por exemplo nas atrizes lésbicas interpretando papéis de mulheres lésbicas, tem um peso enorme para a comunidade. Assim como também a direção feminina. Mulheres lésbicas ocupando ambientes de liderança tem um poder sem igual. E esse é um dos poderes da representatividade.
A importância de facilitar o acesso, aumentar a divulgação e principalmente dar visibilidade a essa temática mostra para muitas mulheres que o problema não está nelas e sim na sociedade que frequentemente a desvalida e invisibiliza. Isso também ajuda na compreensão da sociedade como um tudo, fazendo com que pessoas fora da comunidade possam conhecer mais histórias, além de compartilhá-las e trabalharem a empatia.
É essencial que todos compreendam que para aumentar a visibilidade, é necessário também que todos se movimentem para fazer isso acontecer. É importante que você busque conteúdos representativos e aumente seu repertório no audiovisual para conhecer tantas histórias de mulheres que amam mulheres e que estão pelo mundo esperando terem suas histórias e legitimadas.
Temos que nos mover para que a representatividade esteja sendo aplicada, e se você concorda com isso, seja uma aliada: consuma e divulgue esses filmes. Dê voz a filmes lésbicos, a diretoras lésbicas, a atrizes lésbicas. Dê voz para as lésbicas. Pois temos muito o que compartilhar e pouco espaço para ocupar.
Feliz mês da visibilidade pra nós!