Por Karine Padilha, psicóloga, escritora e artista multidisciplinar

Para entender a monogamia

A monogamia é uma forma de relacionamento em que uma pessoa tem apenas um parceiro (a), seja sexual ou afetivo, por um período ou por toda a vida.

Na monogamia a família é entendida como uma instituição, gerida por normas éticas e morais que geralmente asseguram a sua funcionalidade.

Uma questão importante sobre a monogamia que não ousamos problematizar é: Qual sua finalidade? O que ela provoca nas pessoas que a vivenciam? Ela realmente contempla todo mundo?

Rui Diogo, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de Howard, em Washington, nos Estados Unidos, afirma que a monogamia é um produto cultural, criado pelos homens ao longo dos anos, e está diretamente associado a outra construção social: o gênero, podendo servir também ao controle.

Engels, em seu livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, relata o surgimento da Monogamia como uma maneira encontrada para que o homem pudesse controlar a reprodução feminina e assegurar que as suas propriedades seriam herdadas para a sua prole geneticamente compatível.

Para Engels, a monogamia não representa uma união livre de vontades. Pelo contrário, vê nela a subjugação do feminino ao masculino. Essa forma de entender a mulher como uma propriedade masculina esteve visível em leis por diversos anos nas sociedades ocidentais e ainda presente em outras sociedades, onde a mulher podia e pode ser punida com a morte pelo crime de adultério.

Apesar desse mecanismo de funcionamento, esse modelo de relacionamento se mostra bastante adequado para algumas pessoas, no entanto para outras, que prezam por mais liberdade ou tem dificuldade em se manter em uma relação tradicional, a relação monogâmica pode se tornar um tanto quanto ansiogênica e controladora. É aí que a monogamia passa a se tornar uma ameaça: quando desconsidera a pluralidade subjetiva, afetiva e sexual das pessoas, é cultuada como principal e mais legítima forma de relacionamento e exclui outras possibilidades de se relacionar.

Boa parte das críticas contemporâneas direcionadas a monogamia propõem a desconstrução de sua prática e a legitimação de outras dinâmicas afetivas e sexuais, principalmente em casos onde o tradicionalismo monogâmico torna-se gerador de conflitos, ou até mesmo deixa de contemplar aqueles (as) que não se identificam com ele - contexto que geralmente leva muitas pessoas a optarem pela monogamia pela pressão social e medo do preconceito; uma forma de se ajustar a um modelo de vida "respeitado" e tido como "normal". Importante ressaltar o quanto esse ajuste forçado tende a contribuir significativamente para a repressão sexual, a traição, entre outros conflitos que impactam negativamente no relacionamento interpessoal.

Uma das maiores proposições do movimento não monogâmico atual não é a derrocada da monogamia em si - o temor das bancadas evangélicas, mas a defesa da possibilidade de escolha de outras formas de amar.

Na não monogamia a liberdade de escolha, acompanhada da responsabilização, está acima do que é vendido como "certo ou errado", uma vez que esses conceitos éticos e morais funcionam diferente para cada pessoa: o que é "bom" pra mim, pode não ser "bom" pro outro, o que é "certo" pra mim, pode não ser "certo" para o outro, e tudo bem, há espaço para essa pluralidade. Precisamos começar a ocupá-lo sem culpa!

O amor não é uma receita de bolo universal. Há que se permitir mais experimentações, e para isso também é imprescindível investir em educação sexual.

A não monogamia como possibilidade de se relacionar

Apesar de ser encontrada nas sociedades mais primitivas, foi no final do século XX com os movimentos de revolução sexual e algumas modificações nos padrões de relacionamento que a não monogamia (re)apareceu. Juntamente com essa (re)aparição, vários estereótipos foram associados a ela, ajudando a disseminar uma imagem equivocada de sua prática. Num primeiro momento a não monogamia foi interpretada como uma forma de perversão onde não havia nenhuma responsabilidade afetiva ou pouca/nenhuma obrigação envolvida.  O que só ficou claro com o tempo, é que diferente do que se pensava, as relações não monogâmicas exigem um exercício constante de autoconhecimento e amadurecimento, além de serem permeadas de responsabilidades que demandam uma postura franca e respeitosa.

Para muitas pessoas pode ser mais difícil iniciar um relacionamento não monogâmico do que se manter na monogamia. Isso porque nesse novo molde de relacionamento muitas desconstruções precisam ser realizadas, entre elas o pacto entre os parceiros (as), e o contrato de exclusividade, e várias outras questões que são conversadas e negociadas de diferentes formas, dependendo do casal e do objetivo com o novo modelo de relacionamento.

Monogamia x Não Monogamia - Algumas diferenças

A monogamia tem em sua base de funcionamento um sistema fechado, o que também pode ser encontrado em relacionamentos não monogâmicos, como por exemplo no caso do poliamor que se orienta pela polifidelidade. Da mesma forma que em relacionamentos monogâmicos, em relacionamentos não monogâmicos também existem acordos e contratos, respeito e franqueza.

Diferente da monogamia, na não monogamia encontramos maior liberdade para a circulação do desejo e do afeto, mais abertura para experiências e um entendimento do amor e do sexo como forças que transitam livremente por polos distintos. Na não monogamia conceitos como moral e ética também são reformulados e não servem apenas para garantir o funcionamento do casal enquanto família. Outras necessidades íntimas também são consideradas e a traição geralmente não caracteriza-se como uma ameaça nesses moldes de relacionamento.

Começando um relacionamento não monogâmico

A maior crítica em relação a monogamia é dirigida a situações onde o funcionamento monogâmico é gerador de ansiedade e controle. Portanto, se você está num relacionamento monogâmico, se sente confortável, não vê motivos para mudar, não há problema nisso. Agora, se você está num relacionamento monogâmico, se sente desconfortável, controlado, ansioso (a), ou apenas cogita ter outras experiências de relacionamento, essas dicas podem te ajudar.

Geralmente os relacionamentos não monogâmicos iniciam de três formas:

Pessoas solteiras que encontram dificuldades de se manter em um relacionamento porque não conseguem cumprir com o pacto monogâmico, traem ou se sentem presas na relação tendem a cogitar um relacionamento não monogâmico.

Casais que enfrentam uma traição, e no processo de perdão, quando analisam o que aconteceu acabam optando por abrir a relação. Nesse caso é importante que o casal repense o contrato de relacionamento e converse bastante a respeito do que buscam juntos. É importante ressaltar que para abrir o relacionamento nessas situações é necessário que o casal esteja muito bem, dialogue, tenha empatia e conexão entre si. Quando a relação não está bem, ou a traição não foi superada, dificilmente abrir o relacionamento poderá ajudar. A tendência é que isso se torne mais um "elemento problema" para o conflito.

A terceira possibilidade envolve casais que estão juntos há algum tempo e que querem ter experiências sexuais e afetivas com outras pessoas. Há ainda os que percebem novas necessidades individuais, mas não querem terminar o relacionamento.

Em todos os casos, para iniciar um relacionamento não monogâmico é importante identificar em que patamar está o relacionamento atual, como você se encontra emocionalmente, quais os desejos e necessidades estão em jogo, e a partir daí conversar abertamente com seu par ou até mesmo buscar uma ajuda profissional para tratar dessas questões. E lembre-se, para que um novo molde de relação seja estabelecido, é importante a validação de todos os envolvidos (as).

Dificuldades que podem surgir:

Como a não monogamia ainda é considerada um TABU, muita gente acaba tendo medo ou receio de conversar a respeito e ter uma má recepção por parte do parceiro (a) ou até mesmo colocar o relacionamento em jogo (no caso de pessoas já comprometidas). Nessas situações, a psicoterapia pode ajudar o casal a discutir essa nova possibilidade.

Passando dessa fase do diálogo, novos contratos poderão ser pensados e antigos contratos poderão ser reformulados. Tudo deve ser feito considerando o melhor para os envolvidos.

Responsabilidade afetiva

A ideia de que um relacionamento não monogâmico é desorganizado, desestruturado, sem obrigações e sem responsabilidades é completamente equivocada.

Quando falamos desse tipo de relacionamento destacamos a importância da definição de um contrato, bem como da responsabilidade afetiva de todos que fazem parte dele.

Responsabilizar-se afetivamente diz respeito a se implicar como responsável pelo sentimento e expectativa que criamos na outra pessoa com a qual nos relacionamos, seja esse relacionamento romântico ou não.

A responsabilidade afetiva pode ser exercitada com diálogos francos e diretos, onde se clarifique a intenção do contato/relação,  ao mesmo tempo que se busque respeitar acordos e não expor o outro a situações desagradáveis ou constrangedoras.

Como lidar com o ciúme?

Com a monogamia apreendemos o sentimento do ciúme e num primeiro momento, ao experienciar uma relação não monogâmica, podemos sentir uma certa dificuldade em lidar com ele.

O ciúme pode vir acompanhado de sentimentos como insegurança e medo de ser abandonado (a), por isso, novamente, a importância do diálogo, de um acompanhamento profissional, e de questionar-se se você está, de fato, pronto (a) para ter uma relação não monogâmica.

Ao identificar o ciúme, busque compreender quais os gatilhos acionaram o sentimento, avalie se o acontecimento que despertou a sensação pode ser ajustado  dentro das regras da relação, e discuta isso com seu parceiro (a).  A terapia também pode ajudar muito, nesse sentido, contribuindo para o processo de autoconhecimento e autoavaliação.

Amor e preconceito

É difícil para a maior parte das pessoas aceitar que existem outros tipos de relacionamento além do monogâmico, afinal, esse é o tipo de relacionamento mais "comum". Aprendemos a monogamia com nossos pais, que aprenderam com seus pais, que aprenderam com seus pais e aí por diante. A cultura também tem um forte fator de influência aí.

Em contrapartida, os relacionamentos não monogâmicos ainda não são bem aceitos, e são pouco legitimados. Em algumas culturas encontramos uma pequena representação deles, mas ainda podemos dizer que na cultura ocidental, a não monogamia é algo relativamente "novo". Em função de todos esses fatores,várias pessoas adeptas a relações não monogâmicas, mantêm ocultas suas escolhas amorosas/sexuais .O medo do preconceito e das críticas é o fator principal para que essas pessoas vivam nas sombras, ou sintam-se envergonhadas por suas escolhas.

É importante destacar que, diferente do homem, a mulher tende a sofrer um julgamento muito maior quando assume um relacionamento não monogâmico. Em nossa sociedade a imagem do homem que se relaciona com várias parceiras é a imagem de um homem galanteador, ousado, enquanto que a imagem da mulher é a imagem de uma pessoa que não se dá e não merece o respeito.

Outros marcadores sociais, além dos marcadores de gênero, apontam para maior incidência de preconceito. Nesse cenário LGBTQIA+s também acabam sofrendo muito e precisando lidar com inúmeros julgamentos.

Para tornar possível a superação dessa repressão sexual e amorosa, é importante falarmos e naturalizarmos assuntos como a não monogamia e outras formas de se relacionar sexualmente e afetivamente. Amor e sexo são duas coisas potentes, que caminham lado a lado e precisam ser experimentadas e expressadas com liberdade, com segurança e sem preconceito.

Conheça alguns modelos de relacionamentos não monogâmicos

Relacionamento aberto

Modelo em que os envolvidos apresentam exclusividade afetiva entre si, mas têm liberdade sexual, podendo manter relações com outras pessoas.

Normalmente chamam-se de RA (relação aberta), às relações que apresentam um casal que está aberto a relacionar-se com outras pessoas apenas sexualmente.

Poliamor aberto

Modelo de relacionamento que envolve três ou mais pessoas, que apresentam liberdade de manterem relações sexuais com outras pessoas. No poliamor aberto não há laço amoroso com a terceira pessoa envolvida.

Relacionamento Fechado

Uma relação fechada não é necessariamente sinônimo de relação monogâmica. Há sim relações que são fechadas apenas em um casal. Neste caso, há monogamia. Mas há relações que são fechadas em relações com mais gente. Por exemplo, um trisal (V ou um triângulo) que, pelo acordo entre as pessoas envolvidas, não oferece abertura para a inclusão de mais ninguém, sem sexualmente, nem afetiva ou romanticamente.

Uma relação pode ser fechada com duas pessoas. Mas também pode ser fechada com mais pessoas. No caso de uma relação fechada com mais de duas pessoas, existe então o acordo entre elas que chamamos de polifidelidade.

Poliamor fechado (polifidelidade):

Modelo de relacionamento que envolve três ou mais pessoas, que se relacionam sexualmente e amorosamente apenas entre si.

Relacionamento liberal

Relacionamento com molde monogâmico clássico, mas que permite liberdade sexual se seguidas algumas condições. Exemplos: permissão para beijar outras pessoas em festas, casais que pegam outras pessoas quando estão juntos (mas não sozinhos) etc.

“Don’t ask, don’t tell” (“Não pergunte, não fale”):

Modelo de relacionamento aberto em que os envolvidos apresentam liberdade sexual, mas mantém um pacto de nunca comentarem ou perguntarem sobre as suas aventuras e as do parceiro.

Anarquia relacional

Modelo em que se desfruta dos relacionamentos sem adotar rótulos para estes e que rejeita qualquer noção de hierarquia entre os tipos de relacionamento, por exemplo, entre parceiros amorosos/sexuais e amigos.

A anarquia relacional surgiu de uma filosofia política, como uma forma de aplicar princípios anarquistas às relações interpessoais. Na anarquia relacional há a rejeição da autoridade e do direito e o respeito pela autonomia e pelas escolhas pessoais. Trata-se de valorizar os relacionamentos como preferir, não baseados em estruturas impostas.

Funciona para mim?

As relações não monogâmicas podem funcionar bem para você, como podem funcionar mal. Se você se sente melhor em um relacionamento monogâmico, ou é uma pessoa que tem dificuldade para lidar com sentimentos como o ciúme, por exemplo, provavelmente pode apresentar dificuldade para se adaptar às dinâmicas de um relacionamento não monogâmico. Nesse caso, a monogamia pode se apresentar como uma melhor escolha.

Se você também está pensando em experimentar esse tipo de relacionamento por causa do seu parceiro (a), também é melhor avaliar melhor para não se arrepender mais tarde. O diálogo pode ser útil para chegar num consenso.

Em contrapartida, se você se sente atraído (a) por esse estilo de vida, tem a mente aberta e não tem medo de críticas ou preconceitos, vá em frente. Não há certo ou errado no amor. Todas as formas de amor são válidas, o importante é que você e o seu parceiro (ou parceiros) se sintam felizes. O amor é livre em sua essência. A felicidade consiste em aprender a exercitar a sua liberdade.

Eu defendo o amor livre no sentido mais elevado e puro, como a única cura para a condenação pela qual os homens corrompem a mais sagrada instituição dos deuses: a relação sexual.

Victoria Woodhull - Primeira mulher a se candidatar à presidência dos EUA. Traduziu o Manifesto Comunista para as Américas e defendeu políticas de direitos das mulheres, dos trabalhadores e do amor livre.