Histeria, muito se fala e pouco se conhece

Uma das frases comuns à maior parte das lembranças femininas: “Você é louca, histérica!”. Apesar de figurar capítulos antigos da História, muito se fala e pouco se conhece acerca da histeria e sua história. Aqui, no Lábios Livres, te contamos tudo sobre o substantivo [feminino] que ora funciona como silenciador, ora como patologia.

Palavra com 4.000 anos de idade

A histeria é associada a reações emocionais exageradas e, na maioria dos casos, de forma depreciativa. Porém, enquanto patologia, ela existe?

As primeiras referências à “histeria” datam há mais de 4.000 anos no Egito Antigo. Apesar disso, a origem do termo deriva da palavra em grego “hystéra”, que significa “útero”. Assim se percebe o caráter de patologia notadamente feminina desde o significado mais antigo.

Ainda no Egito antigo, a doença era associada à 'imperfeição do útero femino’, fato que levaria o órgão a se movimentar em busca de locais quentes e confortáveis. A chamada “teoria do útero errante”. Sintomas mentais já eram apontados desde então, como alterações emocionais extremas. Esses eram classificados como “sufocação histérica”, quando o útero movia-se em direção à traquéia e palpitações quando se deslocava ao coração.

Descrição do tratamento para o "útero errante". 

O tratamento ofertado na época era com base nos aromas. Eram colocadas substâncias aromáticas na vulva, de modo que o útero se sentisse “atraído” e voltasse ao seu local correto. Ervas aromáticas também eram inseridas dentro da vagina por meio de um Pessário* metálico, com o mesmo objetivo. A mesma lógica se aplica ao sentir odores não agradáveis para expulsar o útero da região do tórax e abdômen.

(*) Pessário: “Consiste numa estrutura de silicone ou de borracha que vai servir de suporte aos órgãos pélvicos – bexiga, útero ou reto.”

Os gregos eram obstinados em estudar o útero feminino. Para eles, o órgão era peça chave para se entender as diferenças físicas e mentais entre homens e mulheres. A teoria do útero errante, em inglês Theory of the Wandering Wombs, era defendida por Hipócrates e seus seguidores. Areteu da Capadócia, considerava o útero “um animal dentro de outro animal”.

Segundo o jornalista científico, Matt Simon: “Para os gregos, o útero era claramente a base dos modos astutos de uma mulher, e também uma fraqueza (Aristóteles afirmava que uma mulher era um homem "deformado" ou "mutilado"). O útero era uma versão bastante similar ao calcanhar de Aquiles, se você quiser.”

Já Platão afirmava que o útero errante se devia à necessidade de libertação. Mais tarde a histeria ficou conhecida como “sufocação da mãe”. Como tratamento, formigações uterinas e compressas eram recomendadas.

Na Roma Antiga, apesar de não acreditarem piamente na Teoria do Útero Errante, ainda viam a histeria como falta de gratificação sexual. Levando-se em consideração a lógica de relações sexuais constantes, o melhor tratamento prescrito era o casamento. Ou seja: Para as casadas recomendava-se aumento de fornicamento. Para as solteiras, recomendava-se que se casassem.

Quando o casamento não era possível, aplicava-se o “Tratamento de Galeno para Viúvas” -alusão à Galeno (130-200 d.C.)-, que consistia na fricção dos genitais da enferma até que ela atingisse um estado de contrações físicas e de êxtase (hoje, conhecida como orgasmo). A questão seria quem realizaria esse tratamento.

Provavelmente, devido ao tabu com a sexualidade feminina, não se esclareceu quem o realizaria. Se seria Galeno, o que coloca em risco sua autoridade como médico; a própria enferma, como “masturbação” que era encarada como pecado; ou suas assistentes, que não podiam ter formação médica mas tinham skills semelhantes ao de curandeiras. Essas mulheres assistentes mais tarde viriam a ser condenadas como bruxas.

Queimem as histéricas!

Mesmo com o protagonismo do Egito Antigo, Roma e Grécia na constituição histórica e médica do que é a Histeria, o aparecimento da Igreja Cristã protagonizou a primeira mudança no conceito de Histeria. Além das assistentes médicas associadas a curandeiras, os sintomas de Histeria passaram a orbitar o sobrenatural substituindo, portanto, o caráter naturalista. Emoções excessivas, convulsões, mudanças bruscas de humor, formam características de possessão demoníaca e stigmati diaboli, ou seja, marca do demônio.

Na Idade Média e Renascimento, a histeria era considerada como evidência de possessão demoníaca. O diagnóstico, antes feito por médicos, passou agora a ser feito pela Igreja. As mulheres consideradas histéricas eram então interrogadas, torturadas e queimadas na fogueira como bruxas.

Representação da caça às bruxas na idade média.
Representação da caça às bruxas na idade média. Fonte: historiablog.org

Ainda que com 4.000 anos de história, o diagnóstico passa a ser feito pela Igreja no contraponto da Medicina. Dessa forma, o tratamento se resumia à rezas, ferros quentes em locais adormecidos. As Histéricas eram interrogadas, perseguidas, torturadas e, então, queimadas.

O fim do Renascimento, com a Revolução Científica na Europa Ocidental, retomou os estudos patológicos, evoluindo os tratamentos médicos. Tal avanço científico diminuiu a força da humilhação  pública,  exibição do estranho e punição religiosa.

Histeria na contemporaneidade

A partir dos séculos XVII e XVIII, a Histeria sai do espectro de sexualidade para, objetivamente, médico. No século XVII, pela primeira vez considerou-se a histeria masculina como uma possibilidade para diagnóstico. Segundo Thomas Sydenham (1624-1689), a feminina e a masculina eram semelhantes. Chamada de “histero-hipocondria”, pela primeira vez a histeria foi tratada como transtorno neuropsicológico.

Franz Anton Mesmer (1734-1815), no século XVIII, classificou o “mesmerismo”. Mesmer propôs tratar seus pacientes com magnette que transformaria seu fluido  e curaria o enfermo. Ele costumava exibir suas curas de forma pública e dramática, o que reduziu sua credibilidade médica. Vale ressaltar que sua prática popularizou mais ainda o charlatanismo no século XIX.

Médicos como S. Weir Mitchell também ganharam fama. Ele prescreveu tratamento a figuras importantes como Charlotte Perkins Gilman, Edith Wharton e até Virginia Woolf. Como é de esperar, mulheres que eram artistas e escritoras brancas foram diagnosticadas como histéricas em um período em que a transgressão, a falta de vergonha, a ambição e o excesso de estudo eram considerados como causas para a doença.

Atualmente, a então neurose é encarada como um grau de ansiedade que se transporta para manifestações físicas. Dentre os sintomas hoje catalogados estão: pânico intenso, paralisia, cegueira, surdez, etc e perda de autocontrole. Como tratamento, recomenda-se psicoterapia e, em alguns casos, medicação.

A histeria se encontra na raiz da história da Psicanálise. Em peças, Freud discorre sobre a Histeria ainda que esta seja pauta para discussão nos dias de hoje. Para o psicanalista, ela pode abranger os sentidos da visão, audição, paladar e olfato e variar de leves sensações, a anestesia e fortes dores.

Segundo Clovis Eduardo Zanetti e Richard Theisen Simanke: “A sintomatologia da histeria, como é apreendida nos textos iniciais de Freud, não deixa dúvidas a respeito da importância dessa relação. No entanto, essa não é uma relação simples, comportando muitas nuanças que dizem respeito a teorizações especificamente freudianas.”

A histeria e os vibradores

No século XIX, a patologia chamada “histeria” era tratada com… vibradores. Um dos primeiros modelos foi criado em 1869 pelo médico George Taylor, com fins especificamente medicinais. Mudanças de humor, irritabilidade, insônia e cefaléia eram sintomas comumente associados a essa patologia.

Acreditando que o útero era o culpado por essas inconveniências, as mulheres diagnosticadas com histeria recebiam massagens pélvicas que só poderiam ser realizadas pelos próprios médicos - o que culminou na criação do primeiro vibrador mecânico, nascido da necessidade de um aparelho para ajudar a auxiliar nesse tratamento.

Photo by Dainis Graveris
Photo by Dainis Graveris

Sim, mulheres - a possibilidade de ter o seu próprio vibrador e usar para o seu próprio prazer acaba por ser parte da revolução sexual feminina.

A cada 'histérica', uma história

Muitas mulheres são silenciadas ao serem chamadas de “histéricas”, ainda que sem patologia diagnosticada. Normalmente a palavra vem acompanhada de outra com mesmo cunho depreciativo como “louca”. Em todo caso, a histeria aqui funciona como silenciador e mecanismo para invalidação daquela mulher.

Em pergunta, o Lábios Livres através do Instagram coletou algumas vezes em que mulheres foram chamadas de loucas:

“Descobri que meu ex tinha lances com 5 e fui taxada de louca, me bloqueou de tudo!”

“Quando eu questionei algum comportamento masculino, como ciúmes, etc”.

“Quando descobri a traição e as mentiras. Bem típico, né?”

“Nunca fui chamada de histérica por outras mulheres, apenas por homens depois que eles me puxavam até o limite e quando eu explodia, eu era chamada de histérica.”

Gaslighting: o silenciamento feminino

O que há em comum nos três desabafos que mencionamos acima? Silenciamento feminino. O termo mais utilizado atualmente para designar esse tipo de comportamento é o Gaslighting. Imagine um homem chamando outro homem de "dramático'' e "louco". Hmm, raro de acontecer, não é? Acontece que o gaslighting, feito por homens, surge em noção de justificativa para alguma agressão ou invasão que aquela mulher venha a sofrer. Dentre os ambientes mais comuns estão: relações amorosas, ambiente de trabalho, relação familiar com membros homens e relacionamento com amigos.

Aqui vão alguns sinais de que você está sendo vítima de Gaslighting:

  1. Você acredita que todos os problemas só estão na sua cabeça;
  2. Mesmo estando certa, sente culpa ao expor seu ponto de vista;
  3. Passa a duvidar do que você sente e pensa;
  4. O parceiro ou amigo justifica tudo como se você estivesse de tpm ou alteração hormonal;
  5. É comumente chamada de “histérica”, “louca”, “dramática” e “nervosinha”.

O passo mais importante para sair da teia que amarra esse relacionamento, seja ele familiar, de amizade ou amoroso, é identificar. Mas tenha paciência consigo mesma! Isso leva tempo e você não tem culpa da violência que sofre.

Fazer terapia também é uma aliada para compreender seus gatilhos e superar os traumas que isso vai deixar. Conversar com pessoas de confiança e manter sua posição firme podem lhe ajudar a tirar o “peso dos ombros”.

A autora que vos escreve já passou, desde criança, por silenciamento. Na escola, ao possuir uma opinião contrária a da maioria e expressar ela. No ambiente de trabalho, em reuniões nas quais um homem tem uma ideia de quem “pensa alto” e eu de “sonhadora, que não tem os pés no chão”. Em relacionamentos nos quais tudo que via estava apenas diante dos meus olhos e não nos olhos do parceiro: delirante, louca, dramática…

Ainda assim, nós mulheres vamos passar por situações de silenciamento em muitos momentos da nossa vida. Seja em uma reunião de trabalho ou naquela discussão acalorada. Prestar atenção nas mulheres em nossa volta serve como amálgama de força e sororidade, como também de espelho para nossas próprias vivências. O mais importante: você não está sozinha.