A ‘cor do pecado’ é racista por Roberta Oliveira
A seguir você aprende:
- Como a construção social afeta a sexualidade
- Como a miscigenação é fruto do passado racista do Brasil
- A diferença nos estereótipos de mulher branca X mulher preta
- Como a representatividade afeta na autoestima da mulher preta
Sexualidade e construção social
A sexualidade, ainda que seja uma construção social muito particular e que muda de pessoa para pessoa, pode desencadear um comportamento coletivo opressor a depender do grupo social ao qual estamos nos referindo. Principalmente se esse grupo for a população negra.
Vamos usar como exemplo pessoas heterossexuais, que têm sua sexualidade normalizada e compulsória desde que nascem. Já aqueles que fazem parte do grupo LGBTQIA+, ainda nos dias de hoje, tem sua sexualidade questionada pois a sociedade não os enxerga dentro do que é considerado normal (heterossexualidade ou heteronormatividade).
Quando falamos de gênero, o olhar da sociedade em relação a sexualidade também muda drasticamente. O patriarcado é um sistema que objetifica e subjuga mulheres, está presente nos quatro cantos do mundo e tem o homem como o principal detentor do poder. Homens cisgênero, heterossexuais e brancos têm a sua sexualidade colocada em um pedestal. Para eles, tudo é permitido e relativizado. A cultura do estupro é fruto dessa relativização. Assédio é errado mas “com aquela roupa”, “ela pediu”. Desrespeito é errado mas “homem é assim mesmo”.
Neste sistema, as mulheres têm sua sexualidade reprimida, negligenciada e violada, se compararmos com a liberdade sexual dos homens. Ainda que exista um grande movimento para mudança, a sexualidade feminina ainda é um grande tabu.
Realizando um recorte racial, o assunto fica ainda mais delicado e complexo. Isso porque homens negros não detém dos mesmos privilégios que homens brancos, e as pautas e necessidades das mulheres negras podem divergir e conflitar com as pautas reivindicadas pelas mulheres brancas. Para entender melhor tudo isso, basta olhar para a história do nosso país que, apesar de tentar acobertar, os hábitos e estereótipos que a sociedade brasileira perpetua até hoje, são uma realidade vivenciada diariamente por pessoas negras.
Miscigenação e sexualização da mulher preta
O Brasil foi construído sobre um sistema supremacista e patriarcal, onde os homens brancos eram (e ainda são) os principais detentores do poder, principalmente na política, nos privilégios sociais e no seio familiar. Pela primeira vez nas eleições de 2020, o número de candidatos pretos é maior que o de brancos. Dados do TSE apontam que constituem 49,9% e os brancos 47,8%. Ainda que o Brasil tenha mais pretos eleitos, a sub-representação permanece, de acordo com a Agência Senado.
No Brasil colônia, as mulheres brancas eram tratadas com pudor, vistas como frágeis, delicadas, e deveriam se manter imaculadas até o casamento. Normalmente o único trabalho era cuidar do lar. Hoje, essas mulheres lutam pela desconstrução desses adjetivos, mostrando que podem sim trabalhar fora e em qualquer atividade, inclusive as que demandam esforço físico ou habilidade manual, que são fortes o bastante e que querem falar abertamente sobre sexo, tão quanto os homens.
O histórico das mulheres negras, no entanto, é completamente oposto. No período da escravidão, homens e mulheres pretas eram animalizadas e objetificadas. Seus corpos tinham a função de exercer serviço e, nos casos das mulheres, procriação. Aqui a gente já começa a identificar estereótipos que são reproduzidos até hoje.
Durante todo o período de escravidão, as mulheres negras tiveram seus corpos violados. O estupro que os senhores de engenho cometiam contra essas mulheres, dava início ao que hoje a gente romantiza e chama de miscigenação.
Além disso, era extremamente importante para esses homens brancos, que as mulheres negras tivessem muitos filhos para que, claro, eles pudessem ter mais pessoas escravizadas. Para estes homens, o corpo da mulher negra servia apenas para sentir prazer e procriar.
A mulher preta e brasileira é vista no Brasil e no mundo como sinônimo de luxúria. Existe, no imaginário cultural e racista de muitas pessoas, essa imagem de mulheres negras “boas de cama”, “quentes”, com corpos esbeltos e que “provocam” os homens. É mais comum do que se imagina, encontrar mulheres negras que, graças a esses estereótipos, têm dificuldades para se relacionar. São mulheres que já foram abandonadas ou trocadas por outras mulheres (geralmente brancas), o tão conhecido estigma de que são boas na cama, mas não boas o bastante para o matrimônio.
Isso se dá desde a infância. As crianças brancas são sempre vistas com um olhar de doçura, ingenuidade, pureza, e existe a preocupação de proteger a inocência delas durante a criação. E ainda que tenham crescido o bastante, é muito comum ouvir frases como “é só uma criança, não sabe o que faz”. Enquanto isso, as crianças negras são vistas como maliciosas.
Segundo pesquisa realizada pela Universidade de Georgetown, nos EUA, sobre a percepção do corpo de crianças negras, as meninas de pele mais escura são consideradas menos inocentes, mais maduras, tem conhecimento sobre sexo e são mais autossuficientes se comparadas com as crianças brancas. Existe uma adultização das crianças negras, que podem leva-las a situações de risco, como assédio, violência sexual e até mesmo violência policial.
Nátaly Neri, em seu discurso no TED “A mulata que nunca chegou”. Nátaly relata todos os estereótipos sobre mulheres negras e o racismo disfarçado de elogio que ela teve de ouvir durante a sua infância, e como tudo isso afetou sua autoestima e identidade durante a puberdade e juventude. Muitas mulheres negras relatam ter passado pelo mesmo que Nátaly Neri.
Importância da representatividade para a sexualidade
Mulheres negras que hoje são adultas, tiveram como referencial de beleza, mulheres negras que foram hiper sexualizadas, como a Valéria Valenssa, que foi globeleza durante 14 anos.
A falta de representatividade na mídia, afeta drasticamente a vida de mulheres negras. Hoje esse cenário pode estar se transformando com lentidão, mas ainda assim nossas crianças negras podem encontrar mulheres negras na mídia para além do estereótipo da mulata que samba, que é gostosa, é boa de cama, é quente, tem a cor do pecado e sua existência é o suficiente para tirar qualquer homem do sério.
Nossas crianças podem ver hoje jornalistas negras, atrizes, cantoras, advogadas, médicas e tantas outras carreiras e referenciais que nos mostram que somos capazes de sair destes estereótipos racistas. Ainda que sejam poucas referências, se compararmos com a branquitude, com certeza são muito mais do que era possível encontrar na década de 1990 ou anos 2000.
Falar sobre sexualidade feminina requer cuidado e recorte racial. Não é possível tratar o discurso da livre exposição do corpo feminino da mesma forma para mulheres brancas e negras. Não podemos estimular a exposição dos corpos das nossas crianças e jovens negras, pensando que este discurso se aplica a todas. Essa liberdade requer cuidado, pois a exposição pode levar nossas crianças a uma situação de risco.