por Francine Butignon, psicóloga clínica e apaixonada por literatura
Pressão social
Antes de começarmos a falar sobre a pressão social que recai sobre as mulheres para estarem em um relacionamento amoroso, é importante entender alguns conceitos. Desde que nascemos, somos submetidos ao processo de socialização e, a partir desse processo, nós internalizamos regras sociais, as quais são importantes para o funcionamento da sociedade. Assim, a maneira como nos comportamos não é determinada (apenas) pela genética, mas sim aprendida socialmente.
Desde muito cedo, passamos por um processo de aprendizagem no qual alguns comportamentos são desejáveis enquanto outros devem ser refreados. No entanto, esse aprendizado frequentemente ocorre relacionado ao sexo do bebê/criança. Sabe aquela velha e antiquada história de que meninos “deveriam usar" azul e meninas “deveriam usar” rosa, de que meninos “deveriam brincar" de futebol enquanto meninas “deveriam brincar" de boneca? Esses são alguns exemplos do que denominamos papéis de gênero e que (infelizmente e ainda) incide sobre nós por meio da socialização. Assim, denominamos papéis de gênero aquilo que se refere a um conjunto de padrões e expectativas de comportamentos que são aprendidos socialmente e que correspondem aos diferentes gêneros (feminino ou masculino). Infelizmente e ainda, pois a palavra “deveriam” nas frases acima se refere a padrões esperados e completamente engessados daquilo que a nossa própria identidade possui o potencial de ser.
Diferente do que muitos (ainda) acreditam, uma criança não se interessa por futebol ou por bonecas por causa da natureza do seu sexo, mas sim pelo fato de que ela foi ensinada que esse é o interesse que ela deveria ter e que, assim sendo, ela será recompensada de alguma maneira, ou seja, uma criança do sexo feminino é encorajada a escolher certos interesses em detrimento de outros considerados “interesses para meninos”. Por exemplo, um menino que brinca de futebol conseguirá se misturar aos seus pares na sociedade, terá seu grupo de amigos e visto como “normal”, já o menino que quiser brincar de bonecas, via de regra enfrentará dificuldade no convívio social, podendo ser zombado por esse motivo. Isso ocorre pelo fato de que os papéis de gênero estão tão enraizados que aquilo que difere geralmente é interpretado como "errôneo" e/ou "anormal". Esse exemplo é uma maneira de entender como ocorre a socialização de acordo com os papéis de gênero, mas essa socialização vai muito além dos brinquedos e da infância, pois esse olhar e julgamento a partir do gênero persiste durante toda a vida. Assim, somos socializadas para cumprir determinados papéis relacionados ao gênero e a maioria de nós cumpre tais papéis desde que somos muito novas sem nem questionar sobre isso, como se fosse algo natural e não aprendido socialmente.
Com o objetivo de investigar a resposta à pergunta “o que é ser mulher?”, Simone de Beauvoir - filósofa francesa, existencialista e feminista - escreveu “O segundo sexo” em 1949 e concluiu que muitas definições do senso comum, como a de que o sexo feminino é o “sexo frágil”, ou de que “as mulheres nasceram para cuidar dos afazeres domésticos”, estavam sendo usadas para subjugar as mulheres ao longo do tempo e não condiziam com a realidade de que as visões dos indivíduos são socialmente e culturalmente produzidas e, portanto, não se nasce com elas, mas se aprende por meio da socialização. Essa teoria de Beauvoir é representada pela frase “Não se nasce mulher, torna-se” e tem como ponto de partida a ideia clássica do existencialismo de Sartre e que afirma que “a existência precede a essência”, ou seja, o ser humano não possui uma identidade definida ao nascer, mas ela vai sendo construída a partir das nossas escolhas. No entanto, nossas escolhas não são completamente livres, mas muito influenciadas pela cultura e por tudo aquilo que aprendemos socialmente e, como explicado acima, somos permeados pela socialização de gênero, baseada nas expectativas que a cultura de uma sociedade possui em relação a cada sexo.
Desconstruindo conceitos
As expectativas que recaem sobre nós, meninas ou mulheres, invadem e aniquilam o potencial da nossa identidade e acabam por engessar uma enorme gama de comportamentos que poderíamos ter e, consequentemente, experimentar a vida.
E há tantas maneiras de experimentar a vida para além desse molde bastante reforçado socialmente em mulheres: nascer, crescer, conhecer alguém para se relacionar de maneira romântica, casar, ter filhos e morrer. A profissão e outros interesses ficam, por consequência, em segundo plano. O amor romântico é a forma pelo qual o patriarcado encontrou de se apropriar de nós mulheres mesmo após tantas conquistas femininas, pois a partir desse molde é traçado um único caminho possível daquilo que nós mulheres deveríamos buscar na vida e daquilo que nos satisfaria se "encontrássemos".
"No dia em que for possível à mulher o amor não em sua fraqueza, mas em sua força, não para escapar de si mesma, mas para se encontrar, não para se abater, mas para se afirmar. Naquele dia o amor se voltará para ela, assim como para o homem, a fonte de vida e não de perigo mortal. Enquanto isso, o amor representa em sua forma mais tocante a maldição que confina a mulher em seu universo feminino, mulher mutilada, insuficiente em si mesma.” (Simone de Beauvoir)
É raro nos depararmos com homens que colocam como prioridade em suas vidas casar e ter filhos, enquanto é muito comum encontrar mulheres nas quais a “meta de vida” é encontrar um parceiro romântico, casar, ter filhos e ser “feliz para sempre” tal como os conteúdos “para meninas” muito frequentes na infância, como desenhos, contos de fadas e brincadeiras infantis (bonecas, casa, cozinha) etc. Esses e outros conteúdos nos atravessa de tal forma que desde sempre fomos levadas a acreditar nesse molde que nada mais é que uma construção social da maneira de nos comportar de acordo com o gênero e, a partir disso, nós mulheres sofremos por amor, sofremos por amar demais, por amar de menos e também sofremos por não sermos amadas.
Dessa maneira, nossa identidade como mulher foi, durante muito tempo, permeada por encontrar alguém para se relacionar romanticamente, cuidar da casa e da família e hoje em dia, apesar do empoderamento feminino, ainda percebo que muitas mulheres estão cansadas de não encontrar o amor romântico (apesar das outras áreas da vida estarem caminhando bem), o que em outras palavras significa estar cansada de procurá-lo. Isso nos leva ao problema: o objetivo de vida baseado em encontrar alguém para se relacionar amorosamente, como se a vida amorosa tivesse um caráter central na própria existência e nada mais importasse tanto assim.
Solteira e não à procura
Diante de tudo isso, nós mulheres nos fazemos um favor quando desconstruimos alguns conceitos que nos foram ensinados e nos questionamos o motivo pelo qual nos comportamos (sentimos e pensamos) da maneira como nos comportamos. Aquilo que eu desejo é mesmo desejo meu, ou eu aprendi a desejar aquilo que eu desejo? Aquilo que eu faço tem a ver com uma vontade minha, ou com uma expectativa alheia a mim? Por que eu desejo o que desejo? E por qual razão o relacionamento amoroso deveria ser prioridade na minha vida enquanto há tantas áreas da vida a serem focadas e desenvolvidas e vividas?
Segundo Beauvoir, o que trará a liberdade e a emancipação feminina é a independência em relação ao homem, pois ainda hoje em dia, o valor da mulher ainda está muito atrelado ao amor de um homem, o que é bem exemplificado pelas expressões pejorativas como “solteirona” e “mal amada” ditas até os dias atuais. O ponto não é deixarmos de nos relacionar com os homens, mas sim termos um envolvimento afetivo no qual a mulher não é considerada categoria secundária de ser humano, mas sim o sujeito das suas próprias vontades e escolhas, ou seja, "Libertar a mulher é recusar a encerrá-la às relações que ela mantém com o homem, não às negar" (Simone de Beauvoir).
É preciso abandonar a ideia de que o único caminho para a felicidade é pela via do amor romântico. Existem tantas outras fontes de amor: amor de mãe, amor pelo seu animal de estimação, amor de amigas, amor pela própria vida. Não estar em um relacionamento romântico não é o mesmo que não ter amor em sua vida, não ser merecedora de amor, ou não ser amada. Existem muitas outras conexões nas quais o amor pode estar presente.
Não acho que devemos desistir do amor, mas que devemos sim abandonar essa mala pesada que nos entregaram cheia de expectativas quanto a nossa própria vida. A ideia persistente de encontrar um amor romântico como a prioridade da nossa existência é um dos conteúdos que está nessa mala que carregamos, que pesa bastante, mas não nos pertence. Também é preciso dizer o quanto é difícil abandonar os conteúdos dessa mala, pois provavelmente seremos julgadas a cada escolha que fizermos, se não estiver de acordo com aquilo que a sociedade espera de nós. Esvaziar essa mala, pouco a pouco, é um processo que envolve muita conscientização e enfrentamento. E, mais uma vez, cito Simone de Beauvoir: “Conhecimento próprio não é garantia de felicidade, mas isso está ao lado da felicidade e pode fornecer a coragem para lutar por ela”.
Que comecemos pela reflexão e entendimento do contexto que nos cerca, para que possamos caminhar cada vez mais em uma direção na qual nossa energia e tempo seja direcionado para outras realizações, outros sonhos, outras vontades daquilo que queremos viver. O que mais você gostaria de viver para além da busca por um par romântico? Na profissão, com amigos, viagens que gostaria de fazer, coisas novas que gostaria de experimentar e/ou aprender.
Que nós mulheres possamos viver de maneira a expressar o que queremos sem medo e que não tenhamos que viver “mutiladas" pelas amarras daquilo que é considerado feminino. Que deixemos de forçar nossos passos em direção a um outro, que usemos essa energia para nos voltarmos em direção a nós mesmas para que, finalmente, possamos dar um impulso e descobrir que podemos voar um voo lindo por essa vida, com ou sem mãos dadas a um outro alguém.