O que realmente sabemos sobre aborto? É preciso falar de aspectos legais, mas também de saúde física e psicológica. Aqui, nós vamos fazer um breve resumo de tudo que você precisa saber sobre o aborto induzido.

Ao ler você aprende:

  • O que é o ato de abortar
  • O aborto no Brasil: leis e dados
  • O aborto no mundo: dados atuais
  • Mas afinal, quando começa a vida?
  • Métodos anticoncepcionais, mas apenas para as mulheres
  • O que significa a legalização do aborto
  • Abortar não é sinônimo de felicidade para a mulher

“O aborto não é uma questão polêmica, é uma questão não consensual”, é o que afirma Thomaz Gollop, médico e professor de Ginecologia na Faculdade de Medicina de Jundiaí.

Antes de começarmos a discutir e nos aprofundar no assunto, precisamos deixar claro que: falar de aborto vai além das ideologias religiosas. É necessário ouvir e entender as mulheres, que são as principais afetadas com o procedimento e as decisões acerca dele.

Depois, também é essencial a escuta de um médico, profissional que carrega estudos e vivências capazes de esclarecer com credibilidade as dúvidas sobre o assunto. E é exatamente isso que procuramos trazer nessa matéria, então segura firme e vem com a gente.

Em entrevista ao canal do Youtube “Drauzio Varella”, o médico e professor de Ginecologia na Faculdade de Medicina de Jundiaí, Thomaz Gollop, explica que a procura por um consenso geral sobre o tópico “aborto” é inútil, mas que o direito a faze-lo é uma questão pública e de cidadania que vai além de opiniões e crenças.

O vídeo expõe uma conversa entre dois médicos com mais de 40 anos de atuação. Os dois profissionais, que por acaso são homens, entram em consenso de que, para além de tudo, o aborto é uma questão de saude pública.

O que é o ato de abortar

A origem da palavra “aborto” vem do Latim ABORTUS, “desaparecido, com a gestação encerrada”, formado por Ab, “movimento para fora”, mais oriri, “nascer, ter origem” (aboriri).

O Ministério da Saúde classifica o ato de abortar como a interrupção de uma gravidez antes da possibilidade do produto da concepção. Em palavras menos técnicas, seria a interrupção precoce de uma gravidez antes que o feto seja capaz de sobreviver fora do útero, tendo ele menos de 500g e abrangendo o período de até 20-22 semanas completas.

Neste momento você deve estar se perguntando: mas e depois das 22 semanas? Nao é aborto?

Em termos médicos, após as 22 semanas de gestação a denominação mais apropriada seria “parto antecipado” ou “parto prematuro”. Sendo assim, o aborto é a gestação interrompida antes que o embrião possa viver, já o parto prematuro é quando o feto tem chances de sobreviver fora do útero materno.

Se pode parecer complexo entender as questões técnicas/médicas do assunto até agora, imagine-se cercada por pessoas que crêem que o aborto é algo simples de descrever em poucas palavras: errado, pecado e desumano. O texto começa com a conversa entre dois médicos não por outro motivo, mas para explicitar como este assunto é mais profundo e urgente do que muitos imaginam.

Antes de partirmos para os proximos tópicos, é preciso esclarecer que: existem diversas classificações de aborto, inclusive o provocado/induzido (com a intenção de realizá-lo). O que está em pauta neste artigo é o aborto induzido e o direito das mulheres de realizarem este procedimento de forma segura e legal.

O aborto no Brasil: leis e dados

Desde o ano de 1984, consta no Código Penal Brasileiro entre os artigos 124 e 128 que realizar um aborto induzido é considerado um crime contra a vida. Sim, estamos falando de algo que foi disciplinado no ano de 1984, no século passado, e permanece sem alterações até os dias de hoje.

No artigo 128, todavia, aponta-se para a permissão de interrupção da gravidez em dois casos específicos: quando a gravidez é resultante de estupro ou para salvar a vida da mulher. Há ainda uma terceira situação que permite a interrupção terapêutica da gestação que seria em casos do feto ser anencefálico.

Você provavelmente ouviu sobre esses dois casos recentemente:

Menina de 10 anos violentada faz aborto legal,
Menina de 10 anos violentada faz aborto legal,

Os dois casos aconteceram entre 2020 e 2022, e não em 1984.

Existem leis, mas a que preço elas são cumpridas? Dois casos, duas crianças e apenas dois anos de diferença. E se você acha que o cenário não poderia ficar mais chocante e assustador, ele fica. Segundo dados divulgados pela BBC News, mais de metade das vítimas de estupro são crianças até 13 anos (51%). Os abusos são cometidos, em sua grande maioria, por amigos ou conhecidos (30%) e pai ou padrasto (24%). Abusadores desconhecidos fazem parte de apenas 9% do todo.

Já as adolescentes entre a faixa etária de 14 a 17 anos são 17% das vítimas. Os desconhecidos, nestes casos, passam a ser os principais abusadores (32%), seguidos de amigos e conhecidos (26%).

Outro dado assustador é do levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A pesquisa aponta para mais de 100 mil meninas e mulheres que sofreram violência sexual entre março de 2020 e dezembro de 2021. Traduzindo isto para números reduzidos, o País registrou um estupro a cada 10 minutos.

Ainda com tantos dados e casos, a sociedade patriarcal permanece em uma luta constante de controlar o corpo da mulher, como se este não pertencesse a nós mesmas. “É pela vida do feto” é o principal argumento. Mas casos como o da atriz Klara Castanho só reforçam o que, ao final da leitura, você irá concluir: estamos no século XXI, mas alguns direitos ainda nos parecem muito difíceis de garantir.

O aborto no mundo: dados atuais

O aborto no mundo: dados atuais

O aborto não é um fenomeno atual, tendo passado por diversas culturas, religiões e sociedades. Nas sociedades greco-romana, ocidentais medievais e modernas, por exemplo, diversos eram os métodos utilizados para este fim, sendo um deles as drogas abortivas (em sua maioria, de origem vegetal).

As motivações variam. Nas comunidades indígenas da América do Sul, o aborto era realizado pela falta de alimentos ou, até mesmo, para facilitar o parto do segundo filho.

Tanto naquela época quanto nos dias atuais, o controle populacional sempre foi uma questão. Mas sabe-se, também, que a Igreja sempre teve voz latente no que diz respeito à condenação do ato. Ainda em 1869, esta se posicionou contra todos os tipos de aborto (métodos contraceptivos inclusos), considerando-os pecado e sob pena da excomunhão.

Analisando a linha de raciocínio dos séculos passados, é compreensível que as legislações da época girassem em torno da proibição do aborto. O que não é compreensível é a permanência de tal pensamento mesmo após anos de discussões sobre o assunto. Como já apontado no tópico “O aborto no Brasil: leis e dados”, a lei que proibe a legalização do ato no país e ainda nos rege é de 1984.

Com relação aos países desenvolvidos, estamos em um patamar muito abaixo, com a legislação brasileira assemelhando-se a países como o Afeganistão quando o tópico é a legalização do aborto.

A Suécia, Holanda, Portugal, Rússia, Alemanha, Itália, Turquia, Suíça e Uruguai estão entre os 66 países dos quais a mulher grávida tem o direito de decidir se deseja ou não interromper a gravidez. Por outro lado,  cerca de 26 países do mundo contam com uma legislação proíbe o aborto sob quaisquer que sejam as circunstâncias, como o Egito, Iraque, Nicarágua, Filipinas, Senegal e Cisjordânia.

Mas afinal, quando começa a vida?

A vida dentro do útero se divide em dois períodos:

Período embrionário - também denominado de “organogénese”, ele dura até a 12ª semana de gestação e é durante este período de tempo que se formam todos os órgãos.

Período fetal - A partir das 12 semanas de gestação temos um feto formado que irá passar por um período de amadurecimento. Inicia-se então a fase fetal, que vai até ao nascimento.

O assunto se torna mais profundo (e polêmico) quando falamos sobre vida humana. Especialistas divergem de opinião no que diz respeito a “quando a vida começa”. Seria na fecundação? Ou quando o embrião chega à parede do útero? Talvez na quarta semana, quando o sistema nervoso começa a estabelecer suas raízes?

Para Doug Melton, professor de biologia da Universidade Harvard e um dos maiores especialistas do mundo em células-tronco, isso não pode ser respondido pela ciência. Se trata de uma questão metafísica. “Todas as células são formas de vida. Mas isso é bem diferente do conceito de vida que aplicamos a um paciente”, explica Daley.

A cientista Irene Yan, especialista em embriologia do Departamento de Biologia Celular e Desenvolvimento da USP, afirma que "o embrião é vida, mas não é um ser humano. São duas coisas diferentes".

Para quem ainda se utiliza do argumento de que a mulher está “matando uma vida!”, convém o seguinte questionamento: estou defendendo a vida como um todo, ou estou selecionando qual vida vale a pena ser “salva”?

A carne que comemos um dia foi uma vida. Os animais que matamos por medo ou defesa própria também eram uma vida. Mas será que é sobre a vida mesmo? Ou a proibição do aborto vale para todas as mulheres, menos para a amante? Menos para a namorada? Menos para a ficante?

Aborto: uma questão de saúde pública

Durante a Conferência do Cairo das Nações Unidas, representantes governamentais de todo o mundo reconheceram que o aborto inseguro se classifica como um dos maiores problemas de saúde pública. É preciso entender que o assunto não se resume somente ao Código Penal (que, diga-se de passagem, está deveras ultrapassado) e, muito menos, na moralidade.

Quando se fala de saúde pública, se refere à melhoria e garantia da manutenção da saúde, condição essa que ampara as características físicas, psíquicas e sociais da população.

É fácil de entender quando se percebe que não se trata nada mais, nada menos, que o respeito à autonomia pessoal. O direito de termos controle sob o nosso próprio corpo de forma responsável, saudável e justa.

Não quer abortar? Não aborte. Não concorda com o aborto? Não faça um.

Antincepcionais, mas apenas para as mulheres

O anticoncepcional masculino só veio a ser uma possibilidade nos últimos anos, e ainda há quem se recuse a utilizá-lo.

Existe uma taxa de falha dos métodos contraceptivos e todo profissional da saúde busca reforçar a informação. Existem mulheres que engravidaram utilizando DIU, assim como existem mulheres que engravidaram enquanto tomavam pílulas anticoncepcionais.

Anticoncepcionais masculinos para quê, se é mais fácil colocar toda a culpa e responsabilidade de uma gravidez indesejada em cima das mulheres?

O que significa a legalização do aborto

O que significa a legalização do aborto

Já é de conhecimento geral que a criminalização do aborto não impede que as mulheres realizem o procedimento no Brasil e no mundo. Em 2019, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou 195 mil internações por aborto, o que representa 535 internações a cada 24 horas.

De janeiro a junho de 2020, o SUS fez 1.024 abortos legais em todo o Brasil. Em contrapartida, 80.948 mulheres foram atendidas para realizarem curetagens e aspirações, procedimento realizado para a limpeza do útero após um aborto incompleto.

Tendo em vista todas as consequências que um aborto clandestino pode trazer à mulher (inclusive o risco de hemorragia grave), este é mais um motivo para que a legalização se torne uma questão de justiça social. A ideia de ser denunciada e punida pela “justiça” por realizar um aborto viola diversos direitos garantidos às mulheres, entre eles, o direito a intimidade e privacidade.

O que torna o aborto um procedimento inseguro é a sua criminalização. A Organização Mundial da Saúde reconhece o aborto como um procedimento seguro, desde que realizado dentro dos protocolos estabelecidos. A partir do momento que o procedimento passa a ser ilegal e a população não tem acesso a meios oficiais, as mulheres ficam expostas a procedimentos invasivos e de alto risco.

Em grande parte dos países onde o aborto foi legalizado, programas de orientação sobre métodos contraceptivos e educação sexual foram criados para que andassem lado a lado. E a resposta que obtiveram foi mais que positiva.

O Uruguai integra o sistema de aborto legal a programas de educação sexual e reprodutiva e de acesso a métodos contraceptivos e, segundo o Ministério de Saúde Pública do Uruguai, 85% das mulheres que recorreram ao serviço pós-aborto optaram por utilizar algum método anticoncepcional como DIU, vasectomia, pílulas anticoncepcionais, laqueadura, dentre outros. Nos primeiros meses após a legalização nenhuma morte por aborto foi registrada.

Outro equívoco comumente proclamado é de que a proibição do aborto irá diminuir o número de procedimentos. A sua legalização, por outro lado, já provou o contrário em diversos outros países. Em Portugal, durante o primeiro ano (2008) de vigência da lei que permite o aborto, foram realizados 18.607 procedimentos. Quatro anos depois (2018), o país apresentou uma queda no número de intervenções, contabilizando cerca de 14.928 procedimentos.

Pelos dados estatísticos, é possível constatar que a criminalização do aborto não impede nenhuma mulher de realizá-lo, mas traz riscos à sua própria vida.

Abortar não é sinônimo de felicidade para a mulher

Abortar não é sinônimo de felicidade para a mulher

Uma das partes mais incompreendidas nessa discussão é o sentimento da mulher em relação ao aborto. Não é questão de nutrir um desprezo pela vida ou, muito menos, “brincar de abortar”. Mulheres que abortam passam, muitas vezes, por traumas inimagináveis e carregam a culpa por um longo período de tempo. Esta culpa não vem do ato em si, mas da carga e do julgamento incansável da sociedade que se recusa a entender o lado da mulher.

Sim, o aborto é uma prática que traz tristeza e sequelas para as mulheres que passam por isso. Principalmente para as que realizam de forma clandestina e causam danos ao próprio organismo.

Sobre a descriminalização: quem não quer, não faz

A legalização do aborto no Brasil só será realidade quando a nossa cultura aprender a respeitar os limites de cada um.

Se você trata o aborto sob a ótica de um moralismo de base religiosa, essa discussão jamais será compreendida. Mas para quem busca analisar esta luta como como parte de uma política mais ampla de saúde pública, torna-se claro e evidente que esse direito se trata do mínimo.