Por Karine Padilha, psicóloga, escritora e artista multidisciplinar
Sexualidade X Sexo
Antes de começarmos a falar sobre Corpo, Arte e Sexualidade é importante ressaltar alguns conceitos básicos que ainda tendem a ser muito confundidos, como é o caso do sexo e da sexualidade.
Você sabe a diferença?
A OMS define sexualidade como a energia que motiva a encontrar o amor, contato e intimidade e se expressa na forma de sentir, nos movimentos das pessoas e como estas se tocam e são tocadas.
Enquanto isso o sexo é definido como uma dinâmica que inclui aspectos biológicos, fisiológicos e anatômicos da sexualidade.
A sexualidade não se reduz a impulsos, motivações, hormônios e intimidades, nem se resume somente à paixão ou às possibilidades corporais de experimentar prazer e afeto. Ela é produzida historicamente, através de um processo contínuo, infindável.
Nesse contexto, podemos dizer que a sexualidade e o corpo humano estão intimamente ligados a um contexto cultural que está em constante (des)construção, logo, conforme as normas, regras e valores dessa cultura vão sendo modificadas, invariavelmente a percepção do corpo e da sexualidade tende a se modificar, e com isso podemos observar novas representações e significações atribuídas a eles. Essas representações podem ser observadas, também, na arte.
Não é via de regra que a sexualidade precise estar associada ao erótico e ao sexual de forma literal para que seja expressa. Quando falamos de arte estamos falando de símbolos, abstracionismos; o que permite que a sexualidade dentro desse contexto seja representada das mais variadas formas pelos mais diversos corpos e recursos.
Uma maneira de explorar a sexualidade na arte é enxergá-la como uma potência criativa, um elo entre o fazer artístico e o corpo que permite uma autodescoberta e uma experimentação física, psíquica e material.
Corpo Arte e Sexualidade
Para a escritora e jornalista Francielly Baliana é impossível conceber um olhar sobre a história da arte sem que este caminho aponte também para a história do corpo. Em sua mais vasta fluidez ou mesmo na rigidez material que o limita, o corpo parece o espaço mais palpável onde a arte acontece, onde os sentidos são estimulados e percebidos, e a imensidão de um outro alguém, objeto ou espaço encontra possibilidade real de interação.
Márcia Maria Strazzacappa, doutora em artes pela Universidade Paris, defende a ideia de que é através do corpo e do movimento que agimos no mundo:
"O indivíduo age no mundo através de seu corpo, mais especificamente através do movimento. É o movimento corporal que possibilita às pessoas se comunicarem, trabalharem, aprenderem, sentirem o mundo e serem sentidos" Márcia Maria Strazzacappa
Isso nos leva à seguinte questão:
Exploramos, de fato, as potências do movimento e do corpo nas relações a fim de estabelecer desejos e conexões? Como podemos experimentar nossos corpos através da arte de forma a entrar em contato com nossa própria sexualidade e com a sexualidade do outro?
Nesse sentido, a atual cultura nos mobiliza ou nos imobiliza?
A arte na dinâmica expressiva oferece um espaço para a mobilização corporal; um espaço para as “impossibilidades”, para a existência daquilo que encontra resistência na concretude mundana. É de criar com essas "impossibilidades" que damos vida a um novo mundo, a um novo corpo, a uma nova forma de se relacionar com nosso íntimo. A essa capacidade de criar damos o nome de "criatividade".
Na experiência criativa, as ferramentas artísticas, não são apenas ferramentas, são uma extensão corporal indissociável, cujo funcionamento é mediado pelo desejo do sujeito. O desejo evoca, cristaliza e dá forma a uma pequena parte de si mesmo, uma parte abstrata, inominável, intransponível, que só se faz acessível através da união corpo-arte.
Encontramos um exemplo disso em Pollock, pintor expressionista abstrato norte americano, que apresentou seu corpo imerso na tela através da ação pictórica num experimento que deu vida ao action painting:
“Prefiro atacar a tela não esticada, na parede ou no chão… no chão fico mais a vontade. Me sinto mais próximo, mais uma parte da pintura, já que desse modo posso andar em volta dela, trabalhar dos quatro lados e literalmente entrar na pintura”
(Pollock, 1947. Enciclopédia Itaú Cultural das Artes Visuais).
Lygia Pape (Brasil), Ana Mendieta (Cuba), Beatriz González (Colômbia) e Cecilia Vicuña (Chile), também utilizam da expressão corpo-arte para expressarem seu íntimo e denunciarem a violência social, cultural e política que sofriam as mulheres de seus países. Pape estava inserida num contexto em que as artes de vanguarda procuravam quebrar com modelos preestabelecidos de experiência. Nas obras de Lygia, o corpo passou a ser ele mesmo o motor da criação.
Ana Mendieta produziu centenas de micro-performances que questionavam os papéis de gênero e os padrões de beleza do Ocidente no século XX. Mendieta fez performances relacionadas também à natureza do corpo e temas políticos como o estupro infantil.
Beatriz Gonzales e Cecilia Vicuña demonstraram a liberdade conquistada pelo movimento feminista, que discutiu o lugar do corpo da mulher, não só como corpo erótico mas como produtor de arte, de questionamentos e subjetivações; e ainda trouxeram a dor do corpo feminino que lutou e sofreu em meio às diversas ditaduras que assolaram a América Latina.
Paula Rego e Cindy Sherman, contemporâneas, também se apropriaram do corpo de forma criativa para retratar suas percepções acerca de sua experiência com a sexualidade e o feminino na arte.
Paula Rego utiliza representações do corpo feminino que não se conformam com os estereótipos tradicionais. O modelo da artista são mulheres vigorosas, com músculos, sem grande apelo sexualizado.
Cindy Sherman, através da fotografia, usa muito os estereótipos ligados à representação do corpo feminino e vai caricaturar justamente essas representações através de algo que muitos podem considerar como "feio"”.
Em suas fotografias Rosa Luz, cantora, compositora, artista visual e ativista da visibilidade LGBTTQIA+, tenta romper com os paradigmas impostos, alargando os limites entre o autorretrato e a ficção. Em 2018, foi capa da Revista Select com a fotografia “E se a arte fosse Travesti?”.
O artista Paulo Nazareth tem o corpo como seu principal objeto de pesquisa, trabalhando com uma diversidade de mídias. As temáticas que abarca em suas criações estão ligadas ao racismo, à decolonialidade e à violência, dentre outras questões que erguem uma voz combativa de resistência.
Em suma, a auto representação de uma maneira criativa, livre e liberta de todas os condicionantes e imobilizantes culturais do corpo introduz modelos de expressividade que nós não veríamos na arte contemporânea há vinte anos.
Essa auto representação resulta na construção de novas narrativas, entre elas podemos citar a narrativa política e a narrativa da própria sexualidade, que se desdobra na arte a partir das experiências que o artista estabelece com o próprio corpo, com outros corpos, e com o meio onde vive.
Arte para todos os corpos
Inúmeros são os artistas que se valem de seus corpos para explorar a própria consciência, fazer arte, se posicionar, se expressar, mas enganam-se aqueles que pensam que apenas os profissionais da arte têm autonomia para isso.
Para Joseph Beuys, artista alemão integrante do movimento Fluxus, todo homem é um artista. Beuys defende que a arte deve ser uma ferramenta democrática, a qual todos os homens devem ter acesso, considerando que todos são capazes de criar e contar suas histórias através dela.
De fato, qualquer homem pode lançar um olhar artístico para o corpo, e lançar um olhar artístico para o corpo é, também, lançar o corpo à arte; é permitir que este se expresse e seja (re)criado em sua totalidade e ambiguidade; é se deparar, nesse processo, com aceitação e revolta, caos e beleza, dor e prazer, e assim sentir contato e intimidade consigo mesmo- em outras palavras, explorar a própria sexualidade. Esse processo de experimentação pode ser mediado através de recursos como a pintura, a colagem, a fotografia, a escrita, a performance, entre outros.
A fotografia e a pintura na expressão corporal e da sexualidade
Para muitas pessoas, entrar em contato com a própria sexualidade pode ser um evento traumático ou conflituoso. A arte pode contribuir positivamente nesses casos ajudando o sujeito a elaborar e lidar com seus conflitos através da expressão artística.
Atualmente existem diversos processos artísticos ou arteterapeuticos que podem ser utilizados nesses casos. A própria arteterapia abrange as mais diversas linguagens: plástica, sonora, literária, dramática e corporal, o que permite trabalhar esse tipo de problema de forma mais ampla.
Um dos recursos utilizados nesse contexto é a fotografia. Por meio dela o sujeito consegue construir uma narrativa a respeito da sua própria intimidade e encontra meios de se expressar mais livremente.
No primeiro momento de sua constituição, a fotografia convivia fortemente com a ideia de documentar aquilo que se tornaria seu passado, fazendo com que reproduzisse imagens da sociedade para criar repertórios de registro. Atuando com o corpo humano implícito, a fotografia passou a disputar o status entre arte e documento. A fotografia tem, em si, o mesmo estatuto que envolve as ferramentas de trabalho do historiador, as quais são, sempre, o rastro histórico dos homens e as atuações do corpo físico.
São várias as possibilidades e estilos quando nos referimos ao universo fotográfico na contemporaneidade, entre eles podemos citar a fotografia da vida íntima que pode ser definida como uma espécie de diário da intimidade humana. A fotografia da vida íntima se interessa por algo além do apurado técnico, ela está preocupada em mostrar o cotidiano de seus personagens; captar a essência, os sentimentos, ações que fazem parte do dia-a-dia.
O retrato íntimo geralmente apoia-se menos em técnicas e mais no motivo retratado. Em sua produção é importante que a imagem seja fiel ao sentimento que se vivencia, o que pode resultar em registros despretensiosos, despreocupados, informais e confessionais, que tendem a revelar mundos pessoais e introspectivos.
Existem inúmeras maneiras de intervir com a fotografia no contexto corpo-arte, seja na utilização de imagens atuais ou antigas que configuram certa significância afetiva para o sujeito, tendo como propósito a invocação de lembranças, sentimentos e crenças, para a superação de traumas, seja na produção de imagens em que o sujeito permite a comunicação entre seu mundo interno e externo, seja no trabalho da sua autoimagem. A colagem também pode ser explorada e contribui para a montagem de uma narrativa.
É importante lembrar que na produção das fotografias, principalmente nos retratos íntimos, as poses não são apenas poses, revelam mensagens do corpo. Um corpo que frequentemente é silenciado pela cultura do reforçamento da padronização, e que ao dialogar com a câmera pode ser visto a partir de outra perspectiva.
A pintura é outro recurso que pode ser explorado na expressão corporal e na elaboração da sexualidade. A pintura cinética, por exemplo, trabalha com os movimentos corporais do autor e permite que esses movimentos sejam transpostos para o canva, o papel ou demais superfícies, criando linhas, formas, revelando e imprimindo uma identidade subjetiva. Nessa modalidade de pintura a dança e a performance também podem ser exploradas.
Para além da pintura e da fotografia, existem outras ferramentas que podem ser empregadas na experiência criativa corpo-arte. As interlocuções e usos de uma variedade de ferramentas artísticas potencializam essa experiência, e contribuem para intensificá-la. Em outras palavras, quanto mais contato tivermos com a arte, e quanto mais multidisciplinar for esse contato, mais habilidades tenderemos a desenvolver, mais ricas poderão se tornar nossas vivências e insights.
A arte, em geral, é uma ferramenta que desempenha um importante papel na constituição humana. Quando fazemos arte não estamos apenas dando vida a uma obra, estamos explorando o corpo e a consciência na busca por um repertório criativo e uma organização mental e espiritual que nos permita materializar, investigar, formular, compreender um sentimento, um desejo, uma mensagem.
Para além de técnica, a arte pode e deve ser explorada no dia a dia como parte da experiência corporal, permeada pela potência criativa e política da sexualidade.