A difícil tarefa de olhar para o próprio corpo com carinho, gentileza, e sem cair nos poços de destruição da autoestima feminina. Por Maithê Prampero

Como fazer para gostar do próprio corpo, quando existe uma sociedade bombardeando padrões e normativas sobre o “corpo perfeito”? Peito demais. Bunda de menos. Cabelo curto. Longo. Liso. Cachos. Escuro. Claro. Harmonização. Boca demais. Sobrancelha de menos. O tempo todo somos apresentados à última tendência em termos de corpo, e parece um grande absurdo não corresponder a tais ideais. Mais estarrecedor ainda é não correr atrás do “prejuízo”, buscando todas as ferramentas disponíveis para ser outra pessoa. Um corpo.

De acordo com estudo publicado no presente ano¹, 22,3% das crianças e adolescentes do mundo apresentam algum distúrbio alimentar, sendo que a meninas se destacam, com uma proporção de 30%, contra 16,9% dos meninos. Esses dados chamam a atenção porque indicam um aumento do número de pessoas jovens acometidas por transtornos alimentares, uma categoria diagnóstica da Psiquiatria.

Ainda pensando nos transtornos alimentares, outro estudo² mostrou uma grande preocupação de estudantes universitárias em relação ao corpo, sendo maior o grau de checagem do corpo entre aquelas com algum grau de sobrepeso. Dentre as 113 participantes do estudo, 30% apresentaram risco para desenvolvimento de algum transtorno alimentar. Destaca-se que todas eram estudantes de áreas de saúde, o que corrobora com a falsa ideia de associação entre corpo magro e saúde, ou bom desempenho profissional. O corpo é utilizado para dar valor à carreira e qualificação profissional.

Em 2019, o Brasil foi o país com maior número de cirurgias plásticas estéticas, passando a segundo lugar em 2020³. Ainda segundo a mesma matéria, a cirurgia mais buscada pela população brasileira é a lipoaspiração, seguida pelo aumento das mamas. Em um país que, ainda, hoje, tem programas de auditório com dançarinas seminuas, o foco no corpo enquanto objeto público e político é claro. E assustador.

Seria possível pensar nas outras questões que estão relacionadas ao corpo, para além dos transtornos alimentares e do acesso à possibilidade do corpo desejado, como a questão da raça, do gênero, da pornografia. O que se vê é a erotização dos corpos negros, visto como objeto descartável e também a violência dupla da qual as mulheres trans são vítimas, com a ambivalência entre a vergonha e o desejo, principalmente ao se pensar nos homens que cometem tais violências, em sua maioria heterossexuais, brancos, com privilégios financeiros. O documentário Chega de Fiu-Fiu (2018), das diretoras Amanda Kamanchek e Fernanda Frazão, aborda esta e outras temáticas.

Produzido como desdobramento de uma Campanha de mesmo, o documentário discorre sobre assédio e tudo que rodeia o tema: o medo de sair de casa, a dificuldade de enfrentar o transporte público, a liberdade de ir e vir, a construção machista das sociedades. Vale a pena.

Dito tudo isso, retomo a questão que abriu este texto: como gostar de um corpo que o tempo todo é violentado, criticado, cortado e costurado?

Corpo problema: uma questão feminina

É inegável que a pressão social e estética que recai sobre as mulheres é, no mínimo, uma grande violência. Desde pequenas, somos ensinadas a performar um corpo que agrade, que atraia, que rivalize. Aprendemos a manter a puerilidade e crescemos com a máxima de que precisamos servir na caixa, nos sapatos, na menor numeração de roupa.

Assim sendo, é um caminho comum passar a odiar este corpo-objeto, corpo-problema. Nos sentimos estranhas no que deveria ser nosso lar, e contribuímos para a perpetuação de violências. Depilação com cera quente, laser, agulhadas, parcelas e mais parcelas em cosméticos, alongamento de cílios e unhas, silicone. Provavelmente você já pesquisou, ou até mesmo realizou, algum destes procedimentos.

O esforço para gostar do próprio corpo é gigantesco, e, por vezes, se mostra um grande fracasso. Ao abrir a primeira rede social, as comparações voltam como obsessões. O imperativo domina: emagreça! Treine! Coma menos! Coma verde! Guarde dinheiro para cirurgias! Compre! Com a promessa de bem-estar e autoestima elevada, acredita-se nos termos todos que ditam as normas. Apesar disto, quando os resultados frustram, muitas mulheres não encontram a mesma ressonância, sentindo solidão, tristeza, medo, e decepção. Continuam a acreditar que seus corpos são um problema a ser resolvido.

O trabalho de uma vida envolve a tentativa de fazer as pazes com o próprio corpo, o que não significa ausência de procedimentos ou mudanças. Todas merecem sentir que habitam um corpo que julgam bonito, interessante e que realmente componha a identidade. Ao dizer “fazer as pazes”, proponho que se repense os padrões e que a seguinte reflexão seja feita: o que eu acho bonito em um corpo? O que me faz feliz no meu corpo? Se permitir questionar é um grande passo para começar a colocar em xeque os padrões de beleza impostos.

Mais fácil falar do que fazer, pode ser uma relação conflituosa esta do corpo-pensamentos, de modo que as mudanças precisam ser paulatinas, constantes. Somos ambivalência. As relações não são previsíveis, então não seria justo exigir da intimidade com o corpo um equilíbrio idealizado. Haverá incômodos, desejo de mudança, insatisfação, mas também é necessário haver espaço para o prazer, o orgulho, o sentimento de bem-estar.

Corpo-casca: como gostar?

Não há receita, ou panaceia de qualquer tipo. Se a busca é por uma lista de garantias, o presente texto pode te frustrar. Preocupo-me mais com as reflexões e questionamentos do que com as respostas. Se ao fim do texto você estiver questionando os padrões, se permitindo inserir alguns “talvez” ao pensar nas aparências e na diversidade, os objetivos terão sido atingidos.

Como qualquer outra relação, a que existe com o próprio corpo precisa ser desenvolvida, por meio de atitudes diárias, comportamentos. Pode parecer que já conhecemos nosso corpo, e que estabelecer uma relação com o mesmo é algo estranho, mas somos estranhas em nossas casas, porque somos mais que o corpo. O corpo-casca não é o que define a personalidade integralmente, mas o corpo é mensagem, e passar um recado congruente com a personalidade é satisfatório.

Autoconhecimento é habilidade, logo, adquirida. Espelho é a primeira dica. Se permita olhar para o seu corpo, com carinho e calma, sem estabelecer de cara um rótulo. Apenas observe. Comece vestida, termine nua. Se aproxime do seu corpo criando vínculos com ele, intimidade.

Durante o banho, se permita tocar seu corpo, utilizar produtos que goste, com odores que julgue agradáveis. Tire alguns minutos após o banho para hidratar o corpo, secar cada parte com delicadeza. É o seu momento. Se fosse o corpo de outra pessoa, você se permitiria o tempo?

O autoconhecimento também passa pela sexualidade, logo, pode ser interessante utilizar vibradores e outros brinquedos eróticos, para estimular o corpo, descobrir o que você gosta, o que é prazeroso. Desvende as suas zonas erógenas, elas são únicas e suas. A masturbação é uma forma de se enxergar como ser autônoma, capaz, com potencial de gerar sensações gostosas.

Pesquise pessoas que têm corpos parecidos, siga estas personalidades e perfis. Veja o que considera bonito nestes corpos. É mais fácil externalizar, para então integralizar à própria imagem aspectos positivos. As pessoas que você acha bonitas têm algo em comum? Pode surpreender, mas muitos aspectos vão ultrapassar as aparências.

O que você gostaria de ver quando olha para o espelho? E como é que pode chegar lá? A identidade não é instância imutável, ela se transforma ao longo das diversas fases do desenvolvimento. Está tudo bem deixar de gostar de uma cor de cabelo, de um estilo de roupa, de um formato que está presente, mas se permita chegar a esta linha depois de dar uma chance ao seu corpo.

Proporcionar momentos ao corpo é transformador. Conhecer bem o próprio corpo permite que, em ambiente público, se apresente uma mensagem mais verdadeira com a sua identidade. Pequenos atos, como tomar um banho no escuro, à luz de velas, pode te mostrar que o corpo não é só performance, é existência política e dinâmica.

Com o processo, o autoconhecimento e a autoestima serão elevados, pois são processos que se encadeiam, e que estão diretamente ligados à imagem que se tem. Você tem o direito de mudar, de ser a pessoa que deseja. Se dê o direito de conhecer quem és. Você pode gostar!


Referências

  1. LOPEZ-GIL, J.F. et al. Global Proportion of Disordered Eating in Children and Adolescents: A Systematic Review and Meta-analysis. JAMA Pediatrics, [online], v.177, n. 4, p. 363-372, 2023. Disponível em: Global Proportion of Disordered Eating in Children and Adolescents: A Systematic Review and Meta-analysis | Psychiatry and Behavioral Health | JAMA Pediatrics | JAMA Network.
  2. SANTOS, P. et al. Risco de transtornos alimentares e insatisfação corporal em mulheres universitárias. Revista Brasileira de Obesidade, Nutrição e Emagrecimento, São Paulo, v. 16, n. 100, p. 60-67, 2022. Disponível em: Risco de transtornos alimentares e insatisfação corporal em mulheres universitárias | RBONE - Revista Brasileira de Obesidade, Nutrição e Emagrecimento.FONTANIVE, S. Número de cirurgias plásticas cresce a cada ano e suscita debates sobre a autoimagem na sociedade de consumo. Jornal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 09 fev. 2023. Disponível em:Número de cirurgias plásticas cresce a cada ano e suscita debates sobre a autoimagem na sociedade de consumo - UFRGS - Jornal da Universidade. Acesso em 24 de setembro de 2023.