O conceito de erotismo nos remete à Antiguidade Clássica e, ao contrário do que muitos pensam, é oposto ao erotismo “de massa” ao qual estamos acostumadas, como nos famosos sites pornográficos ou os diferentes tipos de conteúdo que reforçam a objetificação da mulher. Mas, atualmente, muitas coisas mudaram, inclusive o papel da mulher no erotismo, que retoma seu espaço na literatura e nas artes como protagonista e detentora do desejo, e não só de musa e objeto.

Às preliminares: um pouquinho de contexto histórico

Sim, a literatura erótica não é propriedade da sociedade moderna. A obra O Banquete, de Platão, é o mais antigo texto sobre erotismo de que temos notícia no Ocidente. O filósofo trabalha com a ideia de que o erotismo é um impulso indispensável à própria vida. Na cultura romana, a obscenidade tinha fins de escárnio como se pode verificar em Satyricon, de Petrônio. Centenas de anos depois, na França Iluminista, entre os séculos XVII e XVIII, temos a sistematização da palavra obscena na escola libertina, representada na famosa obra do Marquês de Sade (importante mencionar que citá-lo aqui não significa que não existem objeções quanto à forma como ele representava as mulheres).

O movimento da libertinagem surgiu como uma forma de expressão da revolta da aristocracia contra a pregação moral religiosa, o que, basicamente, segue a trajetória do erotismo. Desde o final da Idade Média, em suas várias nuances, vem sendo moldado: desafio aos costumes, ataque a qualquer forma de teísmo, liberdade sexual e o pensamento livre. Nesse contexto, a partir do século XVI, o termo “libertino” foi usado para designar qualquer um que questionasse dogmas. Desse movimento surgiu a mostrar que não reprimiam os seus desejos.

Erotismo de massa: o erótico e a indústria cultural

Historicamente, a escrita erótica tem sido um meio de questionar o Estado, a religião e as suas autoridades, a moral, as relações de poder que emanam do sexo e a hipocrisia social. Porém, este caráter crítico se perdeu na passagem do século XIX para o XX e intensificou-se com a internet no século XXI.

Hoje, o conteúdo erótico possui como finalidade de excitar o leitor para que saciar desejos sexuais imediatos. Com a internet e as redes sociais, o material erótico de massa é encontrado e compartilhado em grande escala. As inúmeras páginas “pornôs” oferecem um contentamento sexual momentâneo para o espectador.

Assim, a dimensão crítica vira somente utilitária: o erotismo é absorvido pela indústria cultural e, para que seja amplamente consumido, perde seu aspecto clandestino para se aproximar do que é moralmente aceito. Como exemplo, temos a trilogia Cinquenta tons de cinza, Cinquenta tons mais escuros e Cinquenta tons de liberdade, de Erika Leonard James, que apresenta uma história de amor entre Grey e Anastasia em um contexto sadomasoquista. A trilogia se tornou best-seller e impulsionou muitas outras narrativas na mesma linha.

Esses romances primam pelo sexo “mais apimentado”, mas não abandonam a velha receita dos contos de fadas, em que meninas são ensinadas a viver à espera do príncipe.
Anastasia Steele e Christian Grey, protagonistas do filme 50 Tons de Cinza
Anastasia Steele e Christian Grey, protagonistas do filme 50 Tons de Cinza, baseado na saga literária homônima, escrita por Erika Leonard James. Foto: Divulgação

Também é possível notar isso em Crepúsculo, da autora Stephanie Meyer, em que tempero da história é o vampirismo, dado pelas criaturas mais sedutoras dentre os seres das trevas.

O vermelho do sangue, a mordida no pescoço, e a própria ideia de pecado associam os vampiros a um mundo mais libertário. Mas, na série, são celibatários e vegetarianos, o que contraria a base da literatura vampiresca dada pelo terrível Drácula, de Bram Stoker.
Bella Swan e Edward Cullen em Amanhecer, na saga Crepúsculo
Bella Swan e Edward Cullen, em uma cena de Amanhecer, último filme da saga Crepúsculo. Foto: Divulgação 

O sadomasoquismo e o vampirismo contestam a moralidade, pois propõem um mundo livre de proibições. Mas, observando Cinquenta Tons de Cinza e Crepúsculo, vemos que o erotismo de massa não apresenta aspecto crítico ou contestador típico da literatura erótica. Em vez disso, as duas séries mantêm as coisas como elas estão e acabam por repetir os dogmas conservadores e patriarcais.

Erotismo como questionamento e mulheres como protagonistas

Paralelo a essa massificação, mulheres têm surgido no cenário editorial da escrita erótica, como exemplo, temos a coletânea 69/2 contos eróticos, organizada por Ronald Claver. Nela, as artistas e os artistas buscam reviver a potência rebelde dessa escrita através de um olhar crítico e questionador.

O erotismo na literatura brasileira já podia ser observado desde Gregório de Matos, mas foi mais facilmente reconhecida durante e após a Semana de Arte Moderna de 1922. Em a Antologia da poesia erótica brasileira, apenas 18 de 350 poemas são de autoria feminina. Na antologia O corpo descoberto: dos 53 contos, somente dois foram assinados por uma mulher: Júlia Lopes de Almeida.

A autora Júlia Lopes de Almeida
A autora Júlia Lopes de Almeida. Foto: Divulgação

Como podemos ver, o número de nomes femininos em tais antologias escancara a distância entre mulheres objeto (retratadas como musas) e a mulheres sujeito (as autoras) no decorrer da história. Até o século XX, as mulheres eram objetos e não sujeitos ativos na construção da cultura, inclusive na literatura, o que se dá pelo seu afastamento da escola e da alfabetização, bem como pela sua limitação às tarefas domésticas, pela maternidade compulsória e pela total dependência financeira com relação ao marido.

Atualmente, essa realidade não mudou muito em vários campos da vida feminina. Por exemplo, os dados de uma pesquisa feita pelo grupo Guerrilla Girls mostra que apenas 6% das obras expostas no Museu de Arte de São Paulo (MASP) foram pintadas por mulheres, entretanto, 66% do acervo retrata nus femininos. A pergunta que fica é: “As mulheres precisam estar nuas para entrar no museu?”.

Explorando o universo da arte literária e a história da escrita erótica, conseguimos entender os motivos que levam, muitas vezes, as mulheres a não se identificarem com o gênero. Geralmente, isso acontece porque as leitoras se veem apenas no lugar de musa, até porque, ainda na atualidade, o número de autoras é escasso.

Analisando o "No Meio da Palha", de Branca Maria de Paula

Para mostrar o caminho emancipatório das mulheres na e pela escrita erótica brasileira por meio de algumas narrativas, nós trouxemos o conto “No Meio da Palha”, da autora contemporânea Branca Maria de Paula.

“Um lobo assim vale a pena conhecer.
Que me esperasse atrás da moita e de mim fizesse gato e sapato, sem apelação.
Nem reclamar eu ia.
Um lobo de braços grandes, pernas fortes, enorme, e que me colocasse na palma da mão.
E que me mordesse sem dó, que me comesse sem piedade. Ah, isso anda tão difícil, nem sei se ainda acontece nos dias de hoje. O mundo mudou muito mesmo.”

Em síntese, a narrativa é uma paródia do conto de fadas O chapeuzinho vermelho, de Charles Perrault. O conto se inicia com a “Nova chapeuzinho” desafiando o “Lobo” em um jogo de sedução e termina com a personagem feminina “comendo-o” no meio da palha, o que dá título à narrativa. Em especial, o texto, ao parodiar um conto de fadas, critica a educação dada às meninas por meio desse tipo de narrativa.

"Chapeuzinho Vermelho", Daniel Egnéus
Ilustração do clássico "Chapeuzinho Vermelho", feita pelo ilustrador sueco Daniel Egnéus

De forma genérica, nos contos de fadas, as personagens femininas apresentadas ao público são sempre bonitas, frágeis e delicadas e se vestem como “bonecas”, o que destaca a imposição de um padrão de feminilidade. Além disso, estão sempre em perigo iminente e à espera de um príncipe que seja forte e corajoso para salvá-las do mal. Como solução, a sua única opção de vida é o casamento, a partir do qual têm a possibilidade de “viverem felizes para sempre”.

Quanto às personagens masculinas, são representadas ora pelos príncipes que resgatam as princesas, ora pelos lobos que, como é da sua “natureza”, atacam as “mocinhas” ingênuas. Como resultado, as “historinhas” ensinam que as meninas devem se proteger, regrando as suas condutas, porque os meninos estão à espreita, insistindo, muitas vezes, em abordagens violentas e inconvenientes.

Quanto à identidade feminina, a paródia mostra que a mulher do século XXI busca sair da posição de menina – em um movimento de “desprincesamento” das princesas –, ou seja, aquela que espera alguém para mudar a sua vida, para ocupar uma posição mais produtiva em seu próprio destino. A inversão empregada no conto mostra o sentido explorado pela narrativa: a mulher também possui papel ativo no jogo da sedução, o que contraria os valores que alimentam os contos de fadas, por isso, ela “come” o lobo, colocando-se como uma mulher livre sexualmente na inversão da lógica do “quem come quem”.


As obras que analisamos aqui são meios de incentivar mulheres a buscarem formas de exercer a sua liberdade sexual, desse modo, as autoras e as personagens afirmam o seu lugar ao mesmo tempo em que ecoam o seu discurso, difundindo o seu conhecimento para pôr fim aos preconceitos e abrir espaço para o nascimento de uma nova ética - a sexualmente livre.

Vamos juntas nessa?