por Nataly Simon, do projeto educativo e grupo de estudos Clima Perestroika

Você já parou para pensar que talvez não esteja gozando o bastante? Sentiu uma sensação de estar transando pouco e, por isso, não aproveitando a vida ao máximo? Embora pareça uma conquista da libertação feminina, o viés da produtividade no sexo pode esconder intenções do mercado que prefere que você se sinta insatisfeita e inadequada.


O estrago começou faz tempo: da procriação para o prazer

Já sabemos que o nosso corpo vem sendo domesticado há séculos por diversos motivos.  Mulheres realmente livres parecem só terem existido lá nos confins da história ou em lugares onde a moral judaico-cristã não chegou a colocar os seus dedinhos.

A HQ da sueca Liv Strömquist, chamada “A Origem do Mundo: Uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado”, mostra de maneira bem divertida como é absurda (pelo menos nos parece hoje) a concepção sobre a sexualidade feminina na história, sempre ancorada em uma pseudo-ciência feita por homens brancos, que tinha o objetivo de controlar as mulheres de todas as formas.

Era mais seguro taxá-las de histéricas, loucas ou doentes do que encarar qualquer coisa que se aproximasse da ideia de libertação feminina.

A crença histórica de superioridade masculina sobre as mulheres, unida com a moral religiosa criou o ideal de virgindade, a noção de pureza e de mulher “do lar”, que necessita ser submissa e recatada. Todos esses prejuízos que não foram superados até hoje.

Não podemos esquecer, como nos lembra a filósofa Silvia Frederici, que o capitalismo lá no início já se aproveitou e ainda reforçou essa submissão ao colocar as mulheres como provedoras da força de trabalho - já que eram obrigadas a ter filhos, e naturalmente cuidar deles sem receber nada por isso.

Importante aqui ter o recorte de raça, uma vez que mulheres negras estavam em uma situação totalmente diferente que as mulheres brancas em questão.

Com o andar da carruagem e com as conquistas de movimentos feministas, o mercado viu que não só poderia conquistar consumidoras, como também ampliar a sua capacidade produtiva ao se adaptar de forma muito sutil, se moldando em torno dos movimentos de liberação: ok, então mulheres irão trabalhar, está aqui um anticoncepcional para poder transar sem engravidar e agora vocês todas finalmente tem liberdade para serem o que quiserem!

Mas já sabemos que essa liberdade era bem limitada. Claro, estamos simplificando bastante, mas o que queremos trazer é como o discurso de empoderamento e libertação, principalmente sexual, quando fornecido pelo mercado, precisa ser visto com bastante desconfiança.

Apesar de alguns avanços, estamos ainda bem longe de uma real autonomia dos nossos corpos ou liberdade sexual total.

Nossos pais não falavam de sexo, e a parca educação sexual que tínhamos vinha através de revistas adolescentes bem ruins que já ensinavam “o que fazer para agradar o gatinho” e como ter bons looks para chamar a atenção, com regras de etiqueta não muito modernas, que foram continuadas pelas revistas femininas sempre bem heteronormativas e que, até pouco tempo atrás, vendiam em suas manchetes “como enlouquecer seu homem na cama”, “10 dicas para dar prazer para ele” ou “como fazer ele nunca te esquecer”.

Mas o recado parece ser sempre o mesmo: seja bem transante, fogosa, queira dar o tempo todo para ser um bom exemplar de mulher e, principalmente, dar prazer ao seu homem. Junto com a proliferação da pornografia, que educou gerações a fazer um sexo bem mal feito e violento, e a pornificação das imagens midiáticas - quando tudo parece precisar emanar uma sexualidade latente como uma forma de incitar o consumo - a gente cresceu acreditado que o prazer feminino era uma questão de sorte e que o sucesso de uma relação HT dependia da sua disponibilidade total para aceitar (e querer) sexo sempre.

Se as estatísticas apontam que somente 65% das mulheres heterossexuais cisgêneras têm orgasmo em suas relações sexuais versus 86% de suas colegas lésbicas, pode-se dizer que há algo bem revelador no que tange o prazer e a nossa capacidade (ou não) de gozar.

Já gozou hoje?

E eis que o prazer e o gozo feminino entram nos holofotes, diante de milhões de mulheres que se viram historicamente reprimidas sexualmente, chateadas com seus parceiros incompetentes, e fingindo orgasmos para atender às expectativas criadas tanto em seus relacionamentos, quanto pela sociedade que agora diz: “todo mundo precisa gozar” (e preferencialmente na mesma hora, como acontece nos filmes).

Se tem um termo que bem define os tempos que vivemos, é a Sociedade do Desempenho, termo cunhado e popularizado pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han para definir a tentativa de nos superarmos a todo momento, jamais estando satisfeitas, e ainda achando que essa produtividade e desejo por alta performance são coisas positivas. E como podemos relacionar isso com o tema?

Não é toa que hoje estamos vendo o boom da indústria do orgasmo, se é que dá pra chamar assim: além de milhares de conteúdos com dicas de como obter mais prazer, sob o discurso do "autoconhecimento e empoderamento”, proliferou-se para um público com certo poder aquisitivo a venda de vibradores e outros brinquedos sexuais, retiros de tantra, sessões educativas de masturbação e prazer de todas as linhas possíveis, terapias sexuais, entre outros produtos que nos passam a mensagem de que precisamos gozar mais e de que não sabemos o suficiente sobre nossas sexualidades.

É claro que todos esses itens têm seu lado positivo e necessário, afinal estão colaborando para que mulheres conheçam seus corpos e desejos, muitas delas gozem pela primeira vez e libertem-se de certa forma, já que ali se aprende que não devemos depender de outra pessoa para ter prazer.

E isso é importante.

O movimento “sex-positive” (positividade do sexo) pode ser considerado uma conquista do movimento feminista liberal, popularizando esse debate e ampliado o acesso à informação.

Mas por outro lado, como todo termo criado pelo mercado que tem positividade no nome, parece impor um certo padrão que é supostamente progressista e quebrador de tabu, mas que muitas vezes tem um viés autoritário, impondo um modo de ser.

Se antes se vivia naqueles tempos horríveis onde a gente não podia ter prazer, hoje é o oposto: na sociedade do desempenho a meta é ter orgasmos múltiplos, ou um que dure 15 minutos, ou executar um belo squirting, não importa - aquela sua gozada singela semanal já não é mais suficiente.

Medimos a sexualidade através de métricas de rendimento: quantidade de vezes que gozou, quantas vezes por semana, quantos parceiros/as já tivemos, ou aventuras sexuais que ilustrem essa suposta emancipação.

A nossa fixação pelo desempenho que antes ficava só no trabalho, nas metas financeiras ou na vida fitness, agora extrapola para os nossos orgasmos.

Gozar já vira um novo sonho de consumo e se você não chega nesse lugar ou está de boa com o que tem, há algo de ERRADO com VOCÊ.

Soa familiar, não?

O capitalismo tem dessas, fazer de uma questão coletiva um problema individual, dar um nome que soe como uma disfunção, para que você se sinta inadequada e assim possam surgir novos produtos que curem esse seu problema.

Pode ser que você simplesmente esteja satisfeita com a sua frequência sexual, e se não estiver, pouco se fala que trabalhar que nem um cão, ter um parceiro pouco cooperativo e ainda ter que cuidar da casa e dos filhos é um belo banho de água fria em qualquer libido.

E aqueles sentimentos velhos amigos das mulheres entram novamente: a culpa e a ansiedade por sentir que não correspondemos às expectativas, e que nos fazem recorrer a diversas opções de autoaperfeiçoamento.

Estamos condicionadas a duvidar da nossa sexualidade “normal” e acreditamos que temos que ajustá-la de alguma forma.

Bem como aponta o documentário Orgasm Inc., foram inventados nomes de disfunções femininas para que a indústria farmacêutica pudesse desenvolver remédios altamente lucrativos para um problema inexistente.

Não é contraditório que um sistema que emana sexo por todos os lados, não tenha a maioria das pessoas satisfeita?

Se antes o sofrimento vinha por conta da repressão, uma vez que sentir prazer ou se masturbar era “proibido”, agora uma forma de sofrer é achar que não estamos aproveitando e gozando ao máximo. Curioso não?

E nessa lógica individualizante, trocou-se a libertação sexual feminina como um objetivo coletivo para uma experiência personalizada. Ou seja, não importa que o Brasil seja um dos países com as maiores taxas de feminicídio e violência sexual, que a gente não tenha o aborto legal, que o machismo ainda impere firme e forte por aqui: o que vale é gozar e a questão foi resolvida.

Como podemos juntar as conquistas do conhecimento do nosso próprio corpo com o fato de que poder gozar é só um dos pontos da questão?

O que podemos dizer de uma sociedade que tem índices cada vez maiores de depressão, ansiedade e burnout (que atingem mais as mulheres fazendo com que muitas tomem remédios que cortam qualquer tesão) e que, por outro lado, nunca antes vendeu tanta coisa pra gente gozar?

Precisamos entender que quando falamos de sexo, estamos falando de relações de poder, e que se masturbar e se conhecer, incentivando outras mulheres para tal, pode ser revolucionário, mas sem uma conscientização do todo, vamos ficar nadando no raso do que poderia ser uma real libertação feminina.

O que define um bom sexo?

Diante de tudo isso, não é só porque a gente problematiza que precisa jogar tudo fora. Comparando com as gerações anteriores, com certeza avançamos, e as próximas têm a oportunidade de lidar de uma forma mais natural com a sua sexualidade.

Então como poderíamos descrever uma boa relação com o sexo?

  • Entenda o que é prazer para você: indo na contracorrente, não existe uma lista de boas práticas que sirva pra todo mundo: cada pessoa precisa entender como lida com o prazer, qual é o papel que ele tem, e como pode contribuir para melhorar a sua vida e as suas relações. Sexo gostoso é algo natural, e não deve ser forçado.
  • não vamos entrar na noia da alta performance: achar que precisa gozar 4x por semana para ter pele boa ou sei lá quantas vezes para manter a sua relação saudável, é um parâmetro imposto pela mídia e pelo mercado. Cada pessoa tem o seu ritmo e a sua demanda, tudo bem querer todo dia e tudo bem querer de vez em quando ou nunca se estiver bem com isso. Não tem nada de errado com você e fuja de qualquer padrão quando se fala em sexo.
  • autoconhecimento é importante e conhecimento das estruturas também: masturbação ajuda a nos conhecer, entender o que gostamos, descobrir o prazer. Sacar que a nossa libido e facilidade/dificuldade de gozar está relacionada com o que nos é ensinado por ser mulher e como lidamos com as condições materiais que temos pra sentir prazer pode ser libertador também.

Nós mulheres ainda temos um longo caminho de descoberta e emancipação sexual, e devemos sempre ter um olhar que considere as diferenças de raça e classe social, pois os processos variam bastante de acordo com o grupo. Mas o mais importante é a gente saber que a satisfação sexual não é algo que só depende da nossa força de vontade ou comprar o vibrador certo. Existem diversos fatores estruturais que influenciam a nossa libido e a ideia que construímos sobre o que é uma vida sexual saudável.