por Sophia Krammer - Antropóloga por formação, Game Designer por profissão e Programadora por hobby. Gosta de games, livros, fantasia, ciência, RPG, história, política, filosofia, tecnologia e bruxaria. Louca das Planilhas e Fetichista/Kinkster.

Vamos começar com um aviso muito importante: BDSM só pode ser praticado por maiores de idade. A Regra de Ouro do BDSM é consensualidade, e pessoas menores de idade não podem legalmente dar consentimento a este tipo de atividade. Portanto, uma prática com uma pessoa menor de idade nunca será consensual. E se não é consensual não é BDSM, é abuso.

Em primeiro lugar, o BDSM é um termo guarda-chuva para um grupo muito diverso e ao mesmo tempo específico de fetiches. Então primeiro é bom começar explicando o que é fetiche, ou kink, como é o termo em inglês que muita gente no Brasil usa (inclusive eu mesma, desculpa sociedade). Pois bem, uma definição que eu acho legal de fetiche é “qualquer coisa que seja erotizada que não tenha uma relação direta com sexo no sentido tradicional socialmente aceito”. O que é sexo é uma discussão que vai ficar mais pro fim deste texto, mas neste momento estamos utilizando o sentido clássico de interação direta com genitálias.

BDSM são práticas eróticas
BDSM são práticas eróticas

Assim, as práticas BDSM são práticas eróticas, mas não necessariamente sexuais. São coisas que deixam a gente com muito tesão, mas que uma grande parte das vezes não desembocam em penetração ou sexo oral.

Aliás, pessoalmente eu posso dizer que as práticas de BDSM muitas vezes dão um tipo de tesão que não se transforma em pau duro ou buceta molhada, algo que pode ser definido como um prazer lúdico, um prazer de certa forma similar ao que a gente tinha com as brincadeiras inocentes de criança. É uma forma bastante diferente de explorar e expressar a sexualidade, que faz a gente até parar pra repensar completamente o que diabos é esse tal de sexo, afinal.

Qual a diferença entre práticas de BDSM e outros fetiches?

Uma forma de definir mais especificamente o que são essas práticas do BDSM e o que as tornam diferentes de outros fetiches que não são vistos como BDSM, é que as práticas dentro do BDSM são um jogo com papéis definidos e troca de poder. E nós vamos aqui explorar cada uma das partes dessa afirmação.

Um Jogo, no sentido de que é algo bastante definido e limitado e que todos que estão ali sabem que possui um começo e um fim, e é distinto e separado do “mundo real”. É uma representação, quase como um RPG ou um teatro. Inclusive um termo muito utilizado no meio para dizer que você vai ter uma prática com uma pessoa é que você vai “jogar” com ela. Essa noção clara de ser um jogo é importante para estabelecer certos limites, como por exemplo pra pessoa que curte uma degradação e vai ser humilhada e xingada e desumanizada ali por meia hora ter o processo de “voltar” e saber que na vida real ela não é nada daquilo que foi dito, que aquilo foi apenas parte do jogo, que ela é sim uma pessoa válida e muito foda.

Nesse Jogo, os participantes possuem papéis claros, definidos e negociados de antemão. Em cada tipo de jogo, em cada prática, os papéis são diferentes, mas é sempre claro em uma relação quem ocupa qual papel, dentro de uma sessão. Existem pessoas que são switchers, que costumam alternar qual tipo de papel ela ocupa em diferentes sessões. Inclusive existem casais de switchers que mesmo na mesma relação eles alternam os papéis entre si em práticas diferentes.

E isso envolve a Troca de Poder. Em uma prática BDSM sempre há uma clara hierarquia entre os papéis. Há uma pessoa que guia/controla a prática, conhecida como top, e uma pessoa que recebe a prática, conhecida como bottom. Nisso há uma troca de poder, pois a pessoa Top tem o controle, o poder, sobre o que acontece com a pessoa bottom, mas apenas dentro do que foi previamente negociado e consentido, e a pessoa bottom possui a safeword, a palavra de segurança (que pode ser um gesto, ou outras formas não verbais, pra facilitar vamos chamar apenas de safe). A safe é a garantia que bottom tem para retirar o consentimento a qualquer momento e interromper a sessão ali. Uma vez que a safe é expressada, pára tudo, encerra qualquer prática imediatamente.

BDSM: bondage, disciplina, dominação-submissão e Sado-Masoquismo

Então, o BDSM é uma sigla que abrange as principais e mais conhecidas de suas práticas, que são Bondage, Disciplina, Dominação-submissão e Sado-Masoquismo.

Bondage é o jogo de restringir fisicamente a pessoa. Geralmente associado a restrição de movimento, é muitas vezes o que vem à mente quando se pensa em BDSM: amarrar a pessoa na cama, algemar, etc. Porém mais do que isso, pode envolver também restrição de fala, com gags e máscaras, restrição sensorial com vendas e afins. É muito amplo o campo do que é possível explorar apenas nesta letra do BDSM, tanto pra satisfação diretamente sexual, quanto puramente estética.

E aqui eu vou ter que fazer uma digressão para falar de uma das minhas práticas favoritas da vida: o Shibari. Shibari é especificamente uma técnica de amarrar a pessoa utilizando cordas naturais e que deriva de uma longa tradição japonesa. Ela está muito associada ao BDSM porque muitos dos praticantes de BDSM também são de shibari, porém ao mesmo tempo não é parte do BDSM pois no shibari não existe necessariamente (mas pode existir) uma hierarquia entre os participantes. É possível incluir o Shibari dentro de outras práticas do BDSM (eu o faço), mas a prática por si não é parte. Inclusive é possível praticar Shibari de forma puramente artística, em um parque, e ninguém vai parar os praticantes por atentado ao pudor. Inclusive, em São Paulo, Curitiba e outros lugares, existe o Atados no Parque, um evento maravilhoso em que as pessoas se encontram em algum parque para praticar. Eu recomendo muito.

O D do BDSM simboliza duas práticas diferentes. A primeira é Disciplina, que é o jogo de treinar e adestrar a pessoa bottom para que ela consiga obedecer aos comandos de Top da maneira adequada. Nesse jogo as regras que vão ser seguidas são sempre definidas, negociadas e consentidas de antemão, assim como os castigos por mau comportamento (e os prêmios por bom comportamento, por que não?). Os castigos são uma peça importante nesse jogo, e são sempre coisas que não são agradáveis à pessoa sendo castigada, é a diferença entre punishment e funishment - um trocadilho em inglês pra diferenciar a punição propriamente dita e um simulacro de punição que na verdade é divertido (fun) pra pessoa bottom. Lembrando que mesmo que a punição seja pra ser realmente um castigo, algo que faça a pessoa bottom querer não repetir o mau comportamento no futuro, ela é sempre consentida e negociada de antemão e não deve nunca mexer com gatilhos e limites da pessoa bottom, e esta sempre pode usar a safe e retirar o consentimento a qualquer momento.

A letra D também refere-se à Dominação, e a letra S tem um de seus significados como sendo o contraponto, Submissão. Uma relação de Dominação-submissão, ou D/s, é quando a pessoa bottom dá à pessoa Top o controle sobre algum aspecto de sua vida, de modo que se cria uma série de costumes e comportamentos envolvendo a submissão de uma pessoa à outra. Isso pode ser restrito apenas ao momento da sessão em si (bottom tendo que ajoelhar  e obedecer, chamar por certos honoríficos, etc), como a relações fora da sessão. No meu caso, por exemplo, na primeira relação D/s que eu tive eu dava tutoria a minha sub e guiava os estudos dela, com uma rotina que ela tinha que seguir e me dar satisfação. É um tipo de coisa na qual eu encontro muita satisfação, é uma relação em que as pessoas envolvidas extraem um prazer, que pode ser erótico, em dominar e ser dominada, em controlar e ser controlada.

Sado-Masoquismo é representado pelas letras SM, do final da sigla. É a parte da dor, física e emocional. Sádica é a pessoa que sente prazer em infligir dor, e masoquista é a pessoa que sente prazer em sentir dor. Isso pode envolver o Impact Play, mais popularmente conhecido como spanking, que é o clássico “chicote na bunda”. Impact Play envolve criar sensações de dor através do impacto de diversos utensílios (de tapa a colher de cervejeiro, de chicote de couro a bengalas de bambu), geralmente na região das nádegas por ser a mais segura. Porém essa não é a única forma de infligir dor, e a criatividade das pessoas sádicas que eu conheço é uma coisa realmente impressionante. A gente sempre descobre uma maneira nova de torturar nossas “vítimas”, e os gritos e a carinha de prazer extasiado da criaturinha recebendo a tortura são uma coisa impagável. Enfim, além da dor física existe quem curta brincar com a dor emocional, com as sessões de humilhação e degradação, que também podem ser muito criativas, desde o clássico xingar a formas rebuscadas de fazer a pessoinha passar vergonha.

O ato sexual não é intrínseco ao BDSM

Existem muitos praticantes de BDSM que não misturam sessão com sexo no sentido tradicional, embora haja muitos outros que misturam. Porém, na maioria das festas e eventos de BDSM, e na maioria das casas, é proibido a prática do ato sexual. Porém, mesmo sem interação sexual no sentido de utilização das genitálias, em masturbação, oral ou penetração, o BDSM é extremamente erótico e sensual. Existem muitas pessoas que consideram a prática de uma sessão de BDSM como um ato sexual em si, mesmo que não haja interação genital. Eu pessoalmente não considero qualquer prática de BDSM como sexo, porém muitas são, e isso meio que depende, pra mim, da intensidade da interação e intimidade da minha parceira. Estou num entremeio do “toda prática é sexo” e o “sexo é só interação genital”. E no fim das contas apenas as pessoas envolvidas podem dizer se aquilo foi sexo ou não, o que potencialmente pode tornar coisas bastante complicadas em relações monogâmicas.

Já definiram BDSM como o “Sexo Nerd”, o que é uma comparação que eu acho engraçada e ao mesmo tempo certeira. As práticas todas envolvem muito estudo e muita dedicação para chegarem no resultado desejado. E isso tanto da pessoa que aplica as práticas, a Top, quanto de quem recebe, a bottom. Por exemplo, no Impact Play que falamos acima, não é só chegar e sair dando uns tapas, ou pegar um chicotinho e sair batendo. Existem técnicas, tipos de dor, tipos de impacto que causam sensações diferentes. Existe a mira, o controle, a leitura das reações da pessoa que está recebendo, ritmo e intensidade. Pode levar anos de aprendizado para uma pessoa se tornar proficiente em uma prática. Porém obviamente todo mundo começou de algum lugar, e a comunidade é muito acolhedora com iniciantes, especialmente quando se mostram dispostos a aprender.

Um outro motivo pelo qual podemos dizer que o BDSM é o “Sexo Nerd” é a Negociação. Toda sessão deve ser longa e detalhadamente negociada entre todos os participantes, em todos os detalhes possíveis. Às vezes passamos a semana inteira conversando e planejando, horas e horas, para chegar no final e ter uma sessão de meia hora. Para que possa haver consensualidade é necessário dar uma afirmação informada, na qual a pessoa sabe de antemão com o que está concordando, a não ser em casos de jogos em que a graça está em não saber de antemão o que vai acontecer, como no Fear Play. Porém nesses casos é ainda mais importante o processo de negociação, que todos os limites estejam muito bem definidos e claros, e mais importante ainda que haja uma relação forte de intimidade, conhecimento e confiança entre os envolvidos. E mais especialmente, esse tipo de play não é para iniciantes, pois sai do SSC, o qual veremos em seguida.

Prazer e descoberta da sexualidade
Prazer e descoberta da sexualidade

Diálogo: prazer e descoberta da sexualidade

Todo esse processo todo de estudos e de conversa aberta e honesta com parceires é uma das coisas que, na minha opinião pessoal, tornam o BDSM mais interessante. Ele te dá uma consciência do seu corpo, e do corpo da pessoa com quem você joga, uma consciência sobre a sexualidade, as sensações e reações, em um nível que nenhuma prática “baunilha” dá (baunilha é o nome que praticantes de BDSM dão ao mundo “não-BDSM”).

Enfim, tudo o que acontece dentro de uma sessão é extremamente intenso e pode evocar uma carga hormonal no cérebro equivalente ao de um orgasmo ou de um êxtase místico. Por isso, não é definitivamente algo que terminou, cada um vira pra um lado e dorme.

Ao terminar a sessão é imprescindível que aconteça o Aftercare, que é o "cuidado do depois”, uma forma das pessoas participantes da sessão retornarem ao mundo real e ao estado normal de emoções. Esse aftercare pode ser qualquer coisa… de as pessoas conversarem, a se abraçar e dar carinhos, ou enrolar numa coberta e tomar chocolate quente assistindo desenho animado. Para cada pessoa o aftercare funciona de maneira diferente, e isso também é parte da negociação.

No BDSM existem diversas “bases” que são os princípios segundo os quais uma prática é guiada. Existem várias bases diferentes, mas neste texto vou falar apenas da mais famosa e importante, o SSC. SSC é uma sigla que significa simplesmente São, Seguro e Consensual. Toda prática SSC se baseia nesses três princípios, que significam que a prática deve ser sã, no sentido de não envolver alterações de consciência, segura no sentido de que as práticas devem trazer o menor risco possível para as pessoas envolvidas, incluindo a responsabilidade de verificar todos os objetos, lugares e técnicas e as maneiras de evitar acidentes e também de caso hajam acidentes saber o que fazer para minimizar os danos, e consensual eu vou explicar em seguida.

Regras na prática BDSM
Regras na prática BDSM

Regras na prática BDSM

O BDSM possui centenas de regrinhas, que mudam constantemente de uma pessoa pra outra, de uma relação pra outra, de uma comunidade pra outra. Porém existe uma Regra de Ouro sem a qual nada do resto se sustenta, essa regra é a Consensualidade.

Já disse neste texto, mas é sempre importante ressaltar que sem consensualidade não é BDSM, é abuso. Sem consensualidade não é sexo, é estupro.

Consensualidade não é uma coisa que se ganha com chantagem emocional ou com armadilhas psicológicas. Para haver consensualidade não pode haver relação de poder real entre as pessoas - não as trocas de poder dos jogos de dominação, mas hierarquia real, como entre professore e alune, entre empregadore e empregade.

Segundo, a consensualidade precisa ser claramente comunicada. Terceiro, consensualidade é sempre reversível, podendo ser retirada a qualquer momento. Quarto, ela é específica, com os limites daquilo com o que está se consentindo, muito claros e definidos. Quinto, ela deve ser informada, todas as pessoas envolvidas devem saber exatamente com o que se está concordando. Sexo, ela deve ser entusiástica, ambas as pessoas devem estar interessadas no que irá ocorrer, nada de “ah, mas eu quero muito”, nada de aceitar só porque é importante para o outro. Por fim, ela deve ser livremente dada, sem coação, sem intoxicação, sem estado alterado de consciência - por drogas, por depressão, por qualquer coisa que pode alterar as respostas naturais da pessoa.

Muitas vezes no BDSM realizamos práticas mais extremas e pesadas, que fora do contexto poderiam parecer um completo abuso físico e psicológico a um espectador desavisado. Não custa nunca repetir, a única coisa que diferencia uma prática BDSM de abuso é a consensualidade.O projeto Lábios Livres  fala e dialoga abertamente sobre educação e entretenimento sexual para mulheres, tendo como missão o empoderamento e entendimento das mulheres sob seu próprio corpo. Nos siga nas redes sociais e acompanhe nossos posts diários.