por Francine Butignon, Psicóloga clínica e apaixonada por literatura

Diferente do que muitas pessoas acreditam, a nossa autoestima não é constituída apenas pela nossa relação com o espelho e a própria aparência física, de maneira completamente externa e superficial, mas sim desenvolvida ao longo de nossas vidas por meio da relação que temos com as pessoas com as quais crescemos e convivemos, o que acaba por moldar o quanto nos sentimos valorizadas e reconhecidas a partir da relação com esse outro.

De acordo com a abordagem psicológica da análise do comportamento, a autoestima é produto de contingências de reforçamento positivo de origem social. Por exemplo, quando uma criança se comporta de determinada maneira e os cuidadores consequência desse comportamento com alguma forma de atenção, carinho, sorriso (consequências positivas denominadas reforço social generalizado positivo), há a gratificação da criança. Por outro lado, quando uma criança se comporta e tal comportamento é consequência do com críticas negativas, afastamento, repressão (consequências negativas denominadas estímulos aversivos), há a punição da criança. Enquanto a primeira condição é responsável por aumentar a autoestima, a segunda condição age na diminuição da mesma.

Autoestima é constituída pelas relações
Autoestima é constituída pelas relações

Por extensão da relação com o outro, a nossa autoestima também é constituída pela relação que construímos com nós mesmas e que envolve a maneira como aprendemos a nos amar, além de reconhecer as próprias habilidades e o próprio valor. Assim, a autoestima é caracterizada por ser um sentimento e não um traço de personalidade e/ou algo intrínseco à natureza humana. O sentimento de autoestima não é dado, fixo e imutável, mas sim desenvolvido desde a infância por meio da relação que temos com o outro e tal sentimento pode variar de acordo com a fase de vida que estamos vivendo.

O diagnóstico de câncer, que frequentemente é acompanhado por muitas mudanças tanto na rotina, como na aparência devido a procedimentos que os pacientes são submetidos (consultas médicas, exames, cirurgias, quimioterapias e/ou radioterapias), costuma abalar a autoestima do mesmo, pois interferem significativamente no modo de viver, na disposição e na maneira que o paciente passa a se enxergar durante o processo. Durante a quimioterapia, por exemplo, há a queda de cabelos, cílios e sobrancelhas a depender do quimioterápico utilizado e do tempo de tratamento.

Desde a notícia do diagnóstico, a vida do paciente vira de cabeça para baixo e o que costumava ser prioridade (a rotina anterior geralmente corrida, repleta de obrigações e permeada pelo trabalho) se desloca para o segundo plano e abre espaço para a batalha pela vida a partir de um longo e árduo caminho no qual ainda não é possível fitar o fim da caminhada, seja porque é um caminho completamente desconhecido, seja porque a nossa visão encontra-se turva. Tal sensação comum às pessoas que já enfrentaram um diagnóstico de câncer é muito bem descrita no livro “não se acostume com a vida" pela escritora Marina Arruda: “Em meio ao tsunami chamado câncer, nos perguntamos: Qual é o sentido disso?

Talvez a jornada mais importante que perpassa as agruras de um tratamento físico (quimioterapia, radioterapia, cirurgia etc.) seja a de atravessar essa floresta densa e escura em busca de uma clareira em que brilhe a luz. A luz é esse símbolo para o esclarecimento, a compreensão que vai além do aspecto lógico-racional responsável pelo porquê das coisas. É a presença da vida que insiste em pulsar. Pontos de clareira sempre existem em uma floresta. Mas talvez aconteça de nosso cursor estar erroneamente viciado em apontar para as partes menos iluminadas de nós. E, então, nos dirigimos para as árvores caídas, os galhos retorcidos, as folhas mortas. Eles são úteis, precisam ser reconhecidos, precisamos aceitar sua existência. Mas, quando o câncer aparece, é fundamental mudar a direção de nosso olhar. Buscar as clareiras em nós - aqueles espaços de saúde em meio ao que está doente. É a partir da clareira, da sensação quente e acolhedora da luz, que conseguimos dar sentido ao sofrimento”.

Portanto, esse momento delicado é acompanhado pela necessidade de adaptação ao novo contexto de vida tanto para lidar com a descoberta de um diagnóstico muito difícil, como também para enfrentar todas as modificações impostas na vida, seja na nova maneira de viver o dia a dia devido a mudanças na rotina, como também devido às inúmeras modificações corporais, tanto internas como externas.

Como psicóloga clínica e também como pessoa que passou pela descoberta e tratamento do câncer de mama, considero que o mais importante para atravessar (e ser atravessada por) todas as transformações impostas pela nova realidade seja a rede de apoio, ou seja, pessoas com quem podemos de fato contar e que nos ajudam a nos equilibrar na corda bamba da travessia desconhecida, repleta de inseguranças, medos e incertezas, pois quanto mais fortalecida é a nossa rede de apoio, mais nos sentimos amadas, reconhecidas e valorizadas, o que acarreta em menores chances de um abalo muito intenso da autoestima durante o processo.

Lembro dos primeiros textos que escrevi quando me deparei com o diagnóstico de câncer de mama e compartilho com vocês os que eu considero mais marcantes, pois acredito que as palavras abraçam em tempos difíceis e pode ser o caso de abraçar aqueles que precisam agora.

Francine Butignon (crédito: Instagram/reprodução)
Francine Butignon (crédito: Instagram/reprodução)

Logo que me deparei com o diagnóstico, fiquei suspensa e demorei para assimilar tudo que estava acontecendo, mas a primeira coisa que fiz, ainda suspensa, foi dar as mãos para muitas pessoas que eu sabia que não iriam soltar. E escrevi: "Dessa vez eu fui atravessada por algo que ninguém quer sentir. Ao mesmo tempo, fui atravessada pela vida e dentro de todas as oscilações eu busco trocar o trágico pelo mágico. Disso tudo veio (e ainda vem) a poesia e a oportunidade de olhar para aquilo que realmente importa, de escrever uma história bonita na qual a autoria é minha e sou eu quem escolho o significado que quero dar pra tudo que está acontecendo. Eu insisto em dizer que a arte é a vida e a vida é urgente, ela é agora - como é bom entender a existência (tão na pele) assim. Longe de querer passar por algumas coisas que nos tiram o chão, mas eu vejo nisso tudo a oportunidade de voar bem mais alto do que antes. A dor não é bonita, mas já que a vida é de sentir, que a gente sinta então. E que a gente passe por momentos difíceis sem esquecer que há dias de sol, há dias de chuva e há dias de arco-íris - olha ele aí. Obrigada por cada cor desse arco-íris, vocês sabem quem são.”

Para passar por todo o processo, contei com uma rede de apoio incrível e sou imensamente grata. E, com o tempo, passei a assimilar melhor o diagnóstico e o novo contexto que estava vivendo. Também escrevi sobre isso: "Era um diagnóstico e também uma nova maneira de olhar para a existência. Tive a impressão que a vida estava escorrendo como água pelas minhas mãos. Pensava que aquilo decretava o fim da minha pessoa. Que eu não existiria mais. Que eu nunca mais seria eu mesma. E de fato, eu nunca mais seria eu mesma, eu já começara a ser outra. Quem me visse naquela madrugada conversando com a minha mãe sobre meu passado e sobre todos os planos que eu tinha acerca do que queria concretizar a partir daquele instante pensaria que era uma loucura o tanto de coisa que eu agradecia pela experiência de finitude marcada na pele. Era uma loucura eu me sentir inteira pela compreensão da finitude da vida? Era uma loucura compreender o câncer como uma oportunidade de viver bem melhor sem me preocupar com coisas tão banais? Loucura é viver no modo automático. A partir daquele momento o tempo nunca mais me escorreu pelas mãos. O sorriso vinha entre as lágrimas exatamente por isso: eu tive a oportunidade de compreender a finitude e continuar vivendo, não apenas sobrevivendo, ufa! Compreendi em tempo, ainda bem. Esse diagnóstico fez com que eu ressignificasse minha vida inteira e diante de tudo eu só poderia agradecer por todas as possibilidades que estavam ali diante de mim. Todas as possibilidades estavam ali diante de mim. A vida era a mesma, mas eu não. Por isso.”

Atravessar o caminho desconhecido que temos diante de nós nunca é fácil, mas podemos aprender muito durante o trajeto e, quando não podemos mudar algumas situações da vida, nos resta mudar o nosso olhar para cada situação que temos diante de nós. Senti na pele o quanto isso não é fácil, mas agradeço por cada coisa que aprendi e pelo novo olhar que levo comigo nesta vida, olhar menos automático mais apurado para as coisas que de fato importam.

"Receber um diagnóstico de câncer é como receber uma mensagem da vida dizendo: você está morrendo já faz um tempo e nem percebeu. Nascer deveria ser um diagnóstico, penso eu. Estamos morrendo desde que nascemos e parece que muitas vezes nos esquecemos disso. Morremos sim o tempo todo, mas morremos mais ainda quando nos podamos por medo, a cada frase que não dizemos e a cada gesto que estupidamente decidimos não fazer. Morremos muito mais quando escolhemos deliberadamente não viver o que temos no agora. Depois que descobri que um câncer estava crescendo no meu peito, arranquei-o e decidi viver de peito aberto. Agora (e em todos os agoras que tenho) eu me faço o favor de que se for para pensar na morte, que eu pense antes na vida. Meu medo é o de não viver o que posso enquanto estou aqui, o resto é invenção. E se eu fosse dar um conselho que ninguém me pediu, seria esse: o de inventar uma vida que vale a pena ser vivida."

Além da rede de apoio, o entendimento de cada etapa do processo e das próprias necessidades durante o mesmo contribuem significativamente no trajeto que virá a ser percorrido. A possibilidade de conversar com outras pessoas que já passaram ou estão passando pelas mesmas dificuldades, o uso de cosméticos próprios para cada tipo de pele e o uso de adornos como lenços são exemplos de coisas que podem ajudar a minimizar os danos físicos e psicológicos dessa fase.

A descoberta da nossa beleza, tal como a construção da nossa autoestima, não diz respeito apenas a uma relação de nós mesmas com as superfícies refletidas no espelho, mas sim algo que vai muito além das aparências: é um caminho que que se percorre do lado de dentro da pele e também do lado daqueles que nos dão as mãos e não soltam.