por Niriane Neuman, criadora de conteúdo no @naonasci_prasermae
Mulher sem filhos por opção
A opção de uma mulher pela não-maternidade ainda causa muita estranheza entre as pessoas, sejam pessoas bem próximas a ela, sejam apenas conhecidas ou até completamente fora de seu círculo de relacionamentos.
E é muito doido: ainda, nos dias de hoje, muita gente acredita que “ter filhos” é um desejo de todas as mulheres. Sim, de TODAS! Ou, pelo menos, que deveria ser; e o oposto disso é encarado com muito preconceito, julgamentos, apelações verbais, chegando ao absurdo de mulheres sofrerem agressões físicas por não quererem ser mães. “Egoísta, sem coração, mal amada, árvore seca, problemática, traumatizada, louca, insensível, inconsequente, irresponsável, imatura”, e daí para pior. De tudo isso (e mais um pouco) mulheres que não querem ter filhos já foram (e são) chamadas. Sem contar os milhares de conselhos e opiniões não solicitadas que elas ouvem.
Parece que, quando se trata do assunto “(não) maternidade”, todo mundo se acha no direito (e até no dever) de dar pitaco na vida alheia, como engrenagens do grande sistema de maternidade compulsória.
Sistema de maternidade compulsória
Podemos identificar sistemas compulsórios quando há uma doutrinação para produzir certos comportamentos, gerando padrões que não permitem qualquer tipo de afronta ou questionamento a seu respeito, punindo, de alguma forma, quem se atreve a fazer isso.
E o “sistema de MATERNIDADE compulsória”? Que diabos é isso? Como o próprio nome já diz, é um sistema que induz as mulheres a se tornarem mães, impossibilitando ou dificultando, com seus mecanismos padronizados, que elas pensem e sintam por si mesmas, fazendo com acreditem que a vontade de ser mãe é realmente genuína em todas as mulheres e que a única forma de se tornarem completas, maduras e realizadas é tendo filhos.
E, para aquelas que têm dúvidas ou se opõem a isso, o sistema faz com que se sintam inadequadas, problemáticas, culpadas e sequer tenham coragem de contrapor as “normas sociais”; uma armadilha em que muitas acabam caindo, cedendo à pressão e engravidando ou, na falta dessa possibilidade, adotando uma criança. E é normal que, em sistemas opressores e compulsórios, as pessoas se sintam coagidas ou “hipnotizadas” e repliquem os padrões estimulados sem o mínimo de reflexão e senso crítico.
Mas como se criam esses padrões? Perceba, está mais do que claro que as mulheres são criadas (doutrinadas), desde que nascem, para a maternidade. A grande parte de seus brinquedos infantis são bonecas e artigos domésticos, o que não acontece com os meninos. Outra exemplificação são as novelas, filmes, séries e obras de ficção: quase sempre, o “final feliz” envolve casamento e gravidez como o ápice da felicidade feminina.
Ou seja, as mulheres crescem sendo incentivadas a pensar que apenas este caminho é o correto, é o bonito, porque dificilmente outras alternativas são exibidas como se fossem tão válidas quanto a maternidade. E, para caracterizar bem a compulsoriedade do sistema, aquelas que se atrevem a expor sua não-vontade de ser mãe, frequentemente, são reprimidas com rebotes automáticos de um discurso totalmente convencionado, nada empático e que desconsidera as particularidades, contextos e individualidade das pessoas.
Alguns podem dizer: “tá, mas existem vários tipos de anticoncepcionais, a mulher só tem filho se ela quiser”. Pois é, mas a questão é muito maior que apenas o aspecto físico. Desde que surgiram os métodos contraceptivos, a mulher teve mais condições de decidir sobre sua fertilidade, porém, isso não teve tanto impacto na questão cultural que envolve a reprodução humana. Continuamos, enquanto sociedade, sem receber uma educação sexual e de planejamento familiar adequada, e continuamos sendo todos bombardeados por mensagens implícitas e explícitas de incentivo à maternidade e de repúdio à não-maternidade. Portanto, não basta apenas termos disponíveis os métodos preventivos de gravidez, pois a persuasão social sobre o emocional feminino é muito forte.
E é um sistema com uma doutrina tão bem articulada que as próprias mulheres se tornam defensoras e entusiastas dele, sem perceber que o que estão fazendo é seguir com o cabresto no pescoço e colocando o cabresto em tantas outras pessoas. E o “cabresto” aqui não é o fato de se tornarem mães, mas o fato de boicotarem o livre-arbítrio para escolher se querem isso ou não.
Só o que esse pessoal não se dá conta é de que tratar a maternidade como algo universalmente desejado, por toda e qualquer mulher do planeta, é algo que, para muitas, pode ser extremamente agressivo. Já recebi o desabafo de uma mulher que estava pensando em tirar a própria vida por conta da pressão para que tivesse pelo menos um filho (o que ela não tinha vontade alguma). Era cobrada e hostilizada pela própria família e por membros da igreja que frequentava, fazendo com que se sentisse sozinha, incompreendida, rejeitada e se achasse, segundo ela, um “monstro” por não ter vontade de ser mãe.
Como o discurso que ouvia era de que toda mulher nasceu com a missão de dar à luz, que toda mulher deve ser mãe, que era pecado negar isso, ela, não percebendo a mínima vontade sua para isso, não via razões para continuar vivendo. Ela não chegou a essas vias de fato porque encontrou, a tempo, um espaço onde foi acolhida, compreendida e percebeu que não ter desejo de ter filhos também é normal. Essa história real ilustra o quanto o sistema de maternidade compulsória pode levar ao extremo adoecimento e, em casos mais graves, até ao suicídio. Sem contar as mães que se suicidam por arrependimento da maternidade, outro grande tema tabu, decorrente do mesmo sistema de maternidade compulsória.
Não estou, com tudo isso, querendo dizer que ter filhos é ruim, afinal, é uma vivência diferente para cada uma e, ao defender aqui a “não generalização” do que quer que seja, seria um total contrassenso. Há muitas mães realizadas com a maternidade. Estou colocando que uma experiência de vida tão pessoal não deveria ser padronizada e imposta com uma única alternativa.
Não-maternidade “normalizada”
A não-maternidade também precisa ser “normalizada” como uma escolha digna de vida, afinal, as pessoas são diferentes, têm histórias de vida diferentes, desejos diferentes, valores diferentes, que envolvem desde gostos pessoais até questões de saúde, recursos e contexto social. E, por sermos pessoas tão diversas, algumas terão genuinamente a vontade de ter filhos e apreciarão tê-los (seja por via natural, seja por adoção), contudo, outras não.
Mas, apesar de a não-maternidade ainda ser um tabu em nossa sociedade, aos poucos, como muitas outras coisas no mundo, o cenário vem mudando, e o debate sobre o assunto vem ganhando espaço. Pesquisas e artigos acadêmicos vêm sendo produzidos; matérias aparecem no mundo virtual; aumenta, a cada dia, o número de perfis sobre o tema nas mídias sociais; e personalidades públicas que optaram por uma vida sem filhos estão se manifestando a respeito: figuras internacionais, como Oprah Winfrey, Jennifer Aniston e Marisa Tomei, e nacionais, como Ana Paula Padrão, Alexandra Martins, Maju Coutinho, Letícia Tomazella, etc. E isso é muito bom, porque encontrar representatividade é um dos fatores mais importantes para gerar sentimento de identificação e alívio, para que outras pessoas também se sintam encorajadas a falar sobre o assunto.
Algumas mulheres que não querem ter filhos estão perdendo o medo de expor a questão e começando a compartilhar sentimentos, percepções e reflexões por aí, gerando repercussões positivas. E, com isso, querendo dizer que: “ei, você que não tem vontade de ter filhos, você não está sozinha como pensa, estamos aqui”!
Nem toda mulher nasceu para ser mãe
Biologicamente, no geral, mulheres vêm “equipadas” para gerar bebês, mas, ser um humano envolve muito mais do que o mero aspecto biológico, não é? Se somente os aspectos fisiológicos ditassem as regras da conduta humana, ainda estaríamos em um nível bem primitivo de civilização. Mas assim não é porque temos um nível de consciência e inteligência muito mais complexo e desenvolvido e que, inclusive, consegue influenciar os processos fisiológicos e comportamentais de nossos corpos e até dos corpos de outros seres. Então, é péssimo e totalmente imaturo o argumento de que mulheres devem ter filhos simplesmente porque têm útero!
Ter um filho envolve muito mais do que questões meramente biológicas, exige toda uma adaptação sistêmica na rotina das pessoas envolvidas com a criança, principalmente na da mãe. Ser mãe é uma das tarefas mais desafiadoras na vida de uma mulher, que demanda muita energia, disposição e recursos de todos os tipos (físicos, emocionais, financeiros, relacionais, etc.), e não é todo mundo que quer isso no seu dia a dia. Muitas vezes, as pessoas já vivem envoltas em uma sobrecarga de responsabilidades, o que prejudicaria a atenção que uma criança necessita para se desenvolver.
Nascer com um útero não deve, jamais, ser uma sentença para a maternidade. As mulheres têm, sim, não só o poder de decidir sobre sua vida reprodutiva como o total DIREITO de fazer isso.
Está mais do que na hora de, desde cedo, ensinar às meninas (e também aos meninos) que a maternidade é uma escolha, que podemos optar por uma vida com ou uma vida sem filhos e que ambos os caminhos são dignos.
E tudo bem!
A moral da história é de que tudo bem não querer ser mãe! Podemos ser tantas e tantas coisas na vida, e, dentre as alternativas, existem até certos caminhos que são incompatíveis com as responsabilidades que envolvem a criação de um filho. Ter outras prioridades acima da maternidade não faz de ninguém uma pessoa inferior. Os homens fazem isso aos montes (até depois de os filhos já nascidos) e a sociedade encara sem alarde, por que que com as mulheres tem que ser diferente? Além do mais, vincular o valor de uma mulher totalmente à maternidade é limitar consideravelmente o potencial humano.
A diversidade de experiências humanas e a combinação entre elas ao longo de uma vida são praticamente ilimitadas e, nos moldes em que a maternidade existe hoje, dificulta ou até anula a possibilidade de se ter concomitantemente outras vivências. Quer um exemplo? Imagine uma mulher que é piloto de voos internacionais, que ama poder conhecer e estar em vários lugares do mundo, que passa mais fora do que dentro da própria casa, que tem paixão por tudo isso e não quer abrir mão da profissão e da vida que escolheu: como ela faria para estar presente na criação de um filho? Impossível! Ela teria que mudar muitas coisas em sua vida, por um longo tempo, talvez até ter que abandonar a carreira, para poder atender às necessidades de uma criança.
Também existem mulheres que têm todas as condições para ter um filho, mas simplesmente não têm vontade. E, gente, tudo bem! Ninguém deve se sentir na obrigação de ter filhos. Trazer um novo ser ao mundo, sem ter desejo de fazer isso, tem grandes chances de ser ruim para todas as partes envolvidas. Muito melhor poder vivenciar o que verdadeiramente se quer.
E fica aqui um recadinho final para as mulheres: você não precisa se tornar mãe para provar seu valor, para ser “mulher de verdade”, para se sentir completa, para ser responsável, madura e adulta! Tudo isso independe do fato de ter filhos! Não dê ouvidos aos ecos das vozes do sistema ultrapassado que ainda existe, nem todas as mulheres nasceram para serem mães. Eu não nasci pra ser mãe, e tudo bem!