Por Rosana Pugina, escritora, doutora e autora do livro "Um Depoimento Sócio Histórico Lítero Pornô", sobre literatura pornográfica. A Rosana também administra a página Letra Erótica.

Olá, leitoras e leitores! Voltamos para dar continuidade às indicações de contos eróticos que propõem uma nova filosofia de vida para as mulheres: a dos “lábios livres”, sejam eles os lábios da boca – pelo espaço da emancipação feminina na sociedade –, sejam eles os lábios da vulva – pela liberação sexual das mulheres entre quatro paredes (ou em qualquer outro lugar).

Esquentando...

Comecemos por Eros. Ele é o deus grego do amor e o símbolo das atividades humanas ligadas ao sexo, de cujo nome deriva o adjetivo “erótico”, conforme a etimologia da palavra, que significa sensualidade, lascívia e lubricidade. É de Eros que também se origina a expressão “zonas erógenas”, ou seja, o nome de algumas partes do corpo ligadas ao sexo. Posteriormente, a psicanálise classificou o erotismo como força e princípio de uma ação, o que é proveniente da libido. Erotismo, portanto, significa paixão sexual.

A esse respeito, muitas vezes, já nos perguntamos sobre o poder estremecedor que Eros exerce em nossos corpos. Isso acontece porque ele é também relativo a um instinto de preservação da vida em contraposição à morte e à autodestruição. Entretanto, o prazer erótico encontra-se na fenda entre os dois: a vida e a morte, isto é, na busca pela continuidade em contraposição ao caráter mortal dos seres humanos. É por isso que o orgasmo é entendido como uma “quase morte”, durante o qual nossos corpos, em meio ao clímax sexual, suam, tremem, comprimem, relaxam, enfim, o ápice dessa “montanha-russa” parece inexplicável exatamente porque junta o começo e o fim de nossa existência. No sexo, ao nos entregarmos fisicamente, lançamo-nos em uma busca absurda de permanência da fusão com o outro. Contudo, essa fusão é tênue e fugidia porque só podemos existir enquanto seres distintos. E, dentre outros fatores, é em virtude do excesso erótico que confundimos o amor romântico com a paixão momentânea de uma boa transa.

É claro que a sexualidade, como componente instintivo da natureza humana, assim como ocorre com os outros animais, está a serviço da perpetuação da espécie, sendo, por necessidade, agressiva. Entretanto, pela evolução civilizatória da Humanidade em milhares de anos, o prazer passou a ser mais valorizado do que a experiência reprodutiva, isto é, o erotismo, como uma metáfora para o sexo animal, dissociou-se do seu valor meramente prático, que é a hereditariedade. Sobre isso, enquanto o ato sexual para fins de reprodução é sempre mecânico e repetido, o erotismo é invenção, pois se estrutura na fantasia como uma manifestação da criatividade humana. Nessa perspectiva, Eros já se constitui como subversivo ao se opor ao ideal católico da reprodução.

Vale destacar que o erotismo, apesar de manifestar de forma bastante individual, ele também obedece – infelizmente – aos imperativos morais porque possui caráter social, o que leva à definição dos lugares dos sujeitos numa dada coletividade. Esses lugares determinam as formas de busca da saciedade de certas necessidades dentro do espetáculo erótico. É óbvio que, sem a sexualidade, não há sociedade. Como consequência da necessidade social de domesticação e canalização do sexo, as culturas criaram inúmeras regulamentações, em especial, a instituição do matrimônio heterossexual, monogâmico e cristão, o qual, para o seu “bom funcionamento”, depende da manutenção dos papéis de gênero, fato este que, de forma violenta e castradora, censura a sexualidade feminina, colocando a mulher “em seu devido lugar”. Dessa forma, o erotismo se constitui em paradoxos: é repressão e permissão, sublimação e perversão infinitas.

Esquentou?!

Enfim, chegamos à literatura erótica – a minha área de estudo. Esses textos literários montam o espetáculo sexual de inúmeras maneiras, sendo, por isso, uma forma de trilharmos um caminho emancipatório para as mulheres nesse universo. Aliás, como discutimos na postagem anterior, a literatura erótica é tradicionalmente transgressora. Com vistas a materializar tais questões, apresentamos abaixo a análise do próximo conto erótico que foi escolhido: “Confissões da sedutora”, de Guiomar de Grammont, publicado na coletânea 69/2 contos eróticos, organizada por Ronald Claver (2006).

A narrativa traz as confissões de uma mulher sem nome, contadas por ela mesma, assim como anuncia o título. O ponto de vista é psicológico e se desenvolve a partir das memórias da personagem feminina, as quais são apresentadas desordenadamente. Temos, dessa forma, uma narradora em 1ª. pessoa, marca efetivamente pornográfica. O tom confessional justifica a escolha do foco narrativo. As memórias são contadas com nível igual de importância em sua vida, desde a infância e a adolescência, quando começou a perceber a sua inadequação no mundo, até as lembranças mais atuais, próximas da maturidade.

Durante a narrativa, ela faz uma caracterização de si mesma com base nos acontecimentos diários, sugerindo ser, ela mesma, múltipla, isto é, uma mulher que comporta outras tantas. Como efeito, tem-se a citação de outras narrativas dentro do conto, as quais vão delineando as peculiaridades físicas e psicológicas da personagem. Tal recurso evidencia o aproveitamento de histórias análogas na tessitura das lembranças da sedutora.

Assim, ela segue criando um autorretrato, bastante narcisista, através do uso de uma dezena de referências a personagens de outros textos anteriormente escritos, tanto verídicos quanto fictícios – Helena de Troia, Narciso, Cassandra, Santa Tereza D’Ávila, Velho Testamento, Bataille, Sade, Laclos – pertencentes às esferas da literatura, da filosofia, da religião, etc. A narradora se diz conhecedora dos poderes da sedução, assim, utiliza duas protagonistas célebres pela beleza e, consequentemente, pela atração provocada nos homens: Cassandra e Helena.

A sedução tornou-se minha maldição. Era aprisionada por esse poder, como Cassandra não podia escapar a seu dom adivinhatório, o que a levou à desgraça. Eu era uma espécie de Cassandra, o poder que possuía – que as mulheres invejavam e fascinava os homens – me destruía, me afastava de toda a realidade (GRAMMONT, 2006, p. 67, grifos nossos).

A história é antiga: Helena era apenas o pretexto para que os heróis se disputassem em honra, força e virtude (GRAMMONT, 2006, p. 67, grifo nosso).

No caso da primeira, o seu dom de pressentir o futuro causava espantoso interesse nas pessoas. E Helena, como é sabido, foi o “pivô” da lendária guerra de Troia, o que determina o seu lugar de “culpada” pelo conflito, fazendo dela “moeda de troca” entre os guerreiros, fato este bastante corriqueiro em sociedades patriarcais.

A autora, quando elege tais fontes para embasar e criar uma nova trama, segue aproveitando os papéis já desempenhados pelas personagens dentro do enredo e constrói uma nova narrativa, daí a convergência de vozes na direção de um único sentido: caracterizar a sedutora. Sublinho os questionamentos da narradora quanto às regras sociais impostas às mulheres, sobretudo no que condiz aos padrões de beleza fixados pela mídia, os quais reproduzem a ideologia machista ainda presente nos nossos dias. A postura da narradora é totalmente libertária, pois ela afirma que só conseguiu o seu objetivo depois que quebrou esses paradigmas. Para ela, os homens, mesmo criados segundo as regras patriarcais da sociedade, buscam mulheres contestadoras, muito mais do que máquinas produzidas em série.

Na sequência, surge Narciso, jovem de rara beleza, e do adjetivo que vem de seu nome. Há também alusão às touradas espanholas. A narradora considera-se a caçadora, a toureira, enquanto dialoga com o seu analista em busca de respostas para a sua própria existência. Portanto, assim como Narciso só era capaz de enxergar a si mesmo em detrimento do mundo, a sedutora colocava os seus desejos acima de qualquer outra coisa, da mesma forma como acontece na arena, onde cada um, para sobreviver, tem a urgência de cuidar de si de forma exclusiva e egoísta. Na inversão de lugares entre touro e toureiro, entrevejo uma subversão dos papéis social de homem e mulher, conforme mostra Simone de Beauvoir, em O segundo sexo (1967): a troca é tão acentuada que surge uma “toureira” em cena, ocupação esta inexistente nessa cultura.

Em seguida, a sedutora passa a fazer alusões à bíblia, com ênfase na teoria religiosa da criação do mundo:

“Com certeza, Deus estava drogado pelos perfumes do paraíso quando me fez” (GRAMMONT, 2006, p. 67, grifos nossos), ou ainda: “O desejo é uma fruta proibida” (GRAMMONT, 2006, p. 70, grifo nosso), e também: “Estudei, desde o comportamento da serpente do paraíso [...]” (GRAMMONT, 2006, p. 70, grifos nossos).

Nitidamente, ela faz comparações entre ela mesma e Eva, personagem que, de acordo com as escrituras cristãs, teria comido a maçã proibida no paraíso e levado Adão ao pecado, assim como ela é capaz de levar os homens à transgressão por meio de seus conhecimentos no campo da sedução. Desse modo, a sedutora caminha na corda-bamba entre as urgências do copo e da alma, o que a faz, claramente, procurar referências tão amplas para explicar a sua própria existência: desde a serpente do paraíso até Marquês de Sade.

Outra crítica inerente ao conto está nos valores dessa sociedade reproduzidos em revistas, as quais apresentam fórmulas de beleza que negam a própria mulher.

Não é que não tenha podido optar, muitas opções se apresentaram para mim, embora deva dizer que, nos dias de hoje, ainda é quase impossível uma mulher escolher sua própria existência. Mesmo as revistas que se dizem feministas nos ensinam sempre como nos adequar melhor aos modelos que se julga serem os que os homens esperam de nós. Impressionante a quantidade de receitas para afastar o envelhecimento, como se, para sermos amadas, não pudéssemos ser humanas (GRAMMONT, 2006, p. 67-68).

Juntamente com essa opinião, a autora desvela o seu posicionamento sobre o casamento, ainda visto como única alternativa de vida para a mulher, como se união matrimonial fosse sinônimo de felicidade. Os dogmas católicos continuam sendo alvo da avaliação da narradora também quanto à Inquisição, período em que muitas mulheres foram mandadas para a fogueira por “bruxaria”. Enfim, a narradora faz da emancipação feminina o seu mote e, para isso, utiliza inúmeras citações de mulheres marcadas historicamente, seja pela força, pela posição política, em suma, personagens reais e fictícias de narrativas que atravessaram séculos.

No que condiz às temáticas de Eros, aparecem vários trechos eróticos. Destaco as metáforas do “cavalgar”, que possui forte conotação sexual. Assim como o vocábulo “cavalgar” possui duplo entendimento, a palavra “escravizar” pode ser entendida como uma forma de cerceamento social com relação aos padrões de feminilidade impostos às mulheres ou então como uma alusão às práticas sexuais sádicas, em que há sempre um senhor e uma escrava, ou vice-versa.

E a última menção ao erotismo está no trecho em que a narradora justifica as razões pelas quais desistiu de isolar-se em um monastério. A respeito disso, é evidente o aspecto sexual enfatizado pela narradora. As palavras “fêmea” e “sexo” trazem em si uma maciça relação com a pornografia, ou seja, a dimensão mais animalesca do prazer proporcionado pelo contato físico entre as pessoas. “Fêmea”, como se sabe, é um vocábulo utilizado para distinguir o sexo dos animais. No campo do erotismo, todas as referências usadas possuem alguma ligação, direta ou indireta, com a sedução e tudo isso é encaixado na história a partir de sugestões concatenadas ao sexo, sem que o ato seja explicitamente descrito.

Em outras palavras, o ato sexual possui o único objetivo do prazer, o que também é contrário, muitas vezes, à ideologia repassada às mulheres de geração em geração. Isso significa que ter uma vida sexual ativa sem se casar, como no caso da protagonista, é uma forma de afrontar tais imposições. Consoante às palavras da narradora, as mulheres têm a força da sedução dada pelo patriarcado como essencial em sua constituição ou pela “sua própria natureza”. Ademais, por meio de seu poder de sedução, considerado diabólico pelo discurso religioso, a protagonista se coloca no centro do jogo do desejo, lugar ocupado pelos homens, se olharmos num panorama histórico. Para ilustrar, trago as narrativas de Don Juan, nas quais um amante seduz inúmeras mulheres, sem se envolver com nenhuma, apenas para ter o prazer de colecioná-las e exibi-las em sua lista de conquistas. Em síntese, como no outro conto, os papéis de gênero vêm invertidos.

O conto, pela voz da narradora, discute, de forma patente, a identidade da mulher. Assim, apesar de estarmos no século XXI, ainda é preciso que haja a quebra de regras e de paradigmas sociais com relação ao “papel” feminino, ou melhor, àquilo que a sociedade machista espera de uma mulher, por exemplo, padrão físico de beleza, casamento e filhos. Na narrativa, a força da sedutora vem exatamente da sua negação aos modelos sociais, aos quais muitas mulheres, mesmo na contemporaneidade, são forçadas a obedecer em troca de aceitação.

A respeito das vozes de Eros, o tom é brando e volátil, entretanto, criativo, pois não se materializa nas partes do corpo, mas, sim, no exercício da sedução e, consequentemente, na ruptura de regras sociais machistas, as quais ainda são notadamente vividas, duplicadas e recriadas com o passar do tempo.