Sexualidade é um tema delicado e complexo em qualquer cultura. Especialmente se estamos falando de noções fora do quadro cristão, europeu e com suas estruturas anteriores ao sistema reprodutivo-capital. Liberdade, punição, mitologia e quebra de paradigmas relacionados ao sexo, esses são alguns assuntos que vem a mente quando se pensa em Kama Sutra. Mas…O que é o Kama Sutra?
Sexo provavelmente é a primeira palavra a surgir entre os seus pensamentos, não é verdade? Embora seja correto afirmar que o tema principal deste livro é a “arte do amor”, engana-se quem pensa que o Kama Sutra é simplesmente um manual de posições sexuais — ele vai muito além.
Era uma vez um sábio indiano…
Assim como a Yoga, outro grande equívoco moderno aqui no ocidente, do qual é alvo de apropriação cultural fora da Índia é o Kama Sutra. Para muitos, é motivo de piada existir um “manual do sexo”, do qual nossa cultura tão criada em cima da pornografia enxerga como extensão da mesma.
Porém, o que muitos ignoram é a origem deste livro. Kama Sutra é um conjunto de sete livros que misturam prosa e poesia, em uma narrativa ficcional onde dois personagens se encontram e vivem prazeres carnais.
Escritos pelo filósofo Mallanaga Vatsyayana e publicado por volta do século 4, o Kama Sutra é o mais antigo dos livros da Kama Shastra que sobreviveu na íntegra. E, mesmo assumidamente resumido, pretende-se um guia para absolutamente tudo em matéria de amor e sexo, para mulheres e para homens — incluindo como usar brinquedos sexuais, sexo grupal, sadomasoquismo, homossexualidade, sedução, conquista, como se casar, como segurar o marido/esposa e como lidar com prostitutas e cortesãs (e também como elas devem lidar com os clientes).
Fora os capítulos iniciais, nos quais Vatsyayana pondera sobre as razões para escrever o livro e o certo e o errado no sexo, o enfoque é surpreendentemente neutro, cru e científico — fala inclusive de práticas condenáveis para o autor. Lá estão as diversas descrições sugestivas que fizeram sua fama.
Mesmo assim, o livro está muito longe de ser o mero guia de posições sexuais e Vatsyayana diz existirem 64 posições. A única parte do livro que se refere apenas a sexo é a segunda, Avanços Amorosos, que tem dez capítulos: Estímulo ao Desejo Erótico, Agarros, Carícias, Arranhões, Mordidas, Cópula e Gostos Especiais, Pancadas e Suspiros, Comportamento Viril em Mulheres, Felação e Prelúdios e Conclusões ao Jogo do Amor. Nas cinco partes seguintes, descrições explícitas de masturbação e todo o resto voltam à cena apenas para ilustrar uma ideia ou outra.
Se atiçou sua curiosidade, separei alguns beijos que estão disponíveis no livro para você experimentar assim que puder. Ao total, são pelo menos 30 tipos de beijos descritos.
- Beijo de toque: quando a mulher sente os lábios do parceiro com a língua e, de olhos fechados, passa a tocar as mãos do companheiro.
- Beijo inclinado: quando um dos parceiros fica levemente acima do outro
- Beijo voltado: quando a mulher fica de costas para o homem e vira apenas o rosto para ser beijada e acariciada na face pelo parceiro.
- Beijo agarrado: quando um dos parceiros toma os lábios superior e inferior do outro entre os seus.
Tantra x kama sutra: caminhos que se encontram e se separam
O Tantra tem despertado interesse e ampliado seu destaque na mídia nos últimos anos. No entanto, mesmo com a difusão crescente, muita informação equivocada sobre a filosofia tem sido difundida. Há uma enorme confusão sobre o que é o Tantra, e o que seria o sexo tântrico. Você sabe a diferença entre os dois?
Para muitos estudiosos, o Kama Sutra não tem nada a ver com sexo tântrico. A palavra "tantra" que aparece no livro se refere à magia, às poções de amor e afrodisíacos. A ideia de sexo tântrico era incipiente e seus defensores eram — e ainda são para os hindus ortodoxos — considerados membros de uma seita herética.
Vatsyayana também se declara contrário ao hedonismo e deixa claro na introdução que o kama, a realização amorosa, é só a terceira coisa mais importante na vida. Antes vêm a virtude espiritual (dharma) e a prosperidade (artha) — sendo que sem riqueza não há virtude.
Para o filósofo, a vida é incompleta sem o kama, pois sem ele não há reprodução — mas, pasmem os católicos mais ortodoxos, no século 4 Vatsyayana já dizia que sexo só para reprodução era coisa só para bicho. Além disso, defensor do autocontrole, o filósofo fala de como pessoas privadas de sexo se tornam ansiosas e irritadiças.
Apesar da origem divina atribuída pelo autor e dos frequentes conselhos sobre a necessidade da religião – numa das partes ele ensina as mulheres a evitar mendigos, magos e budistas —, o Kama Sutra não é um livro sagrado.
Na literatura hindu, os Sutras — diferentemente dos Vedas, os textos sagrados propriamente ditos — são algo como tratados educacionais. Existem deles sobre guerra, arquitetura e gramática. Não se filosofava independentemente da religião, mas nem por isso a função do filósofo se confundia com a do sacerdote.
Há outra vertende, que acredita que para o sexo tântrico faz parte do kama sutra e não há como praticar um sem o outro. Para que se possa atingir e praticar o sexo tântrico, é necessário trilhar um caminho, individual para cada um. É preciso curar e mudar a maioria dos padrões sexuais aprendidos e viciados para que o sexo se converta em uma comunhão de êxtases e de meditação.
Para isso, é necessário meditação, terapia, modificar uma série de condicionamentos, que não estão apenas relacionados diretamente ao sexo. Se você tiver interesse em praticar o tantra de forma consciente, a ABRATANTRA oferece profissionais que vão auxiliá-lo nesse caminho interno.
Aqui no Lábios Livres temos um texto sobre o que é sexo tântrico e como praticar. Clique aqui para ler, são sete minutos de leitura. Fizemos também uma live com Camila Borenstain, fundadora da @lunaconnections e facilitadora do Sagrado Feminino e Tantra. No encontro Camila explica o que é sexo tântrico e dá dicas de como introduzir a prática nas suas relações. Salve e assista depois clicando aqui.
Prazer regulado
Não foi somente esse livro de condutas que a colonização alterou. Até hoje, há uma vigente lei regulatória de performances sexuais, a chamada Section 377.
Antes de explicá-la, é importante lembrar que a Índia é território de algumas das mais antigas etnias da humanidade, datando descobertas iniciais de mais de 50 mil anos atrás. Em cerca de 2000 a.C., o subcontinente indiano entrou na Era do Aço, fase em que se deu origem a um dos textos mais antigos do Hinduísmo, “Os Vedas”. Foi quando também surgiu o Sistema de Castas, criando hierarquias entre sacerdotes, guerreiros e cidadãos comuns. Com o final do período Védico, novos pensamentos religiosos, como o Jainismo e o Budismo, surgem por volta de 300 a.C. Ja no século 1, há movimentos de nômades mulçumanos por todo continente indiano, que se instalam na atual cidade de Delhi com um sultanato islâmico.
Esse é um minúsculo resumo de como a Índia atual foi formada e como ela existe há milhares de séculos antes de sua colonização pelo Império Britânico , que ocorreu somente no século 18 com a formação do posto das Companhias Britânica das Índias Orientais, que controlavam a entrada e saída dos portos indianos e dominaram os territórios, colonizando-os, com imposições bélicas e tecnológicos treinamentos militares. E é importante conhecer um pouquinho dessa história pelo menos para falar sobre gênero e sexualidade no país.
O Código Penal introduzido pelo governo britânico em 1861 instaurou uma lei chamada Section 377 relacionada às atividades sexuais contra “a ordem da natureza”. Dentre as ofensas, estariam “quem voluntariamente tivesse relações carnais contra a ordem da natureza com qualquer homem, mulher, menores de idade ou animais com pena de prisão perpétua”. Sim, relações de homossexualidade e zoofilias estavam no mesmo pacote.
Essa lei causa danos à população LGBTQIA+ indiana até os dias de hoje. Como exemplo, há relatos tristíssimos de pessoas que foram violentadas por aparentarem ser queers, inclusive por integrantes de setores que deveriam protegê-las, como policiais que usaram da Section 377 para as perseguir e manipular essas pessoas.
Em 2015, há registros de 1.500 pessoas presas sob essa lei, incluindo menores de idade. Orgãos de Direitos Humanos criticam esse legislativo como contraproducente no combate ao HIV/AIDS por tornar um tabu relacionado a homossexuais e trabalhadores do sexo. Instaurada no período colonial, essa lei teve revisões emblemáticas a partir de 2009, passando por anos de considerações legislativas até 2017, quando o Supremo Tribunal indiano considerou o direito à privacidade como um direito fundamental ao abrigo da Constituição, tornando a Section 377 inconstitucional.
O pecado da homossexualidade
Porém, direitos que constituem uma democracia estão sempre em vulnerabilidade quando um país está sendo governado por um sistema de extrema direita, com partidos ultra fundamentalistas em posição de poder, caso da Índia atual. Então, pode-se dizer que, apesar da vitória da Fundação Naz, grupo voluntariado indiano que trabalha em prol da educação sobre a Aids, em brigar por direitos relacionados à sexualidade nessa última década, ainda há muitas reformas necessárias para uma real liberdade de pessoas LGBTQIA+ em transitar em público como desejarem e não serem culturalmente prejudicadas por suas orientações.
Na Índia, o sexo orbita sobre a cultura da vergonha e do pudor, regulamentadores das condutas básicas da moral indiana. Sendo tratado de forma oprimida, pecaminosa e punitivista, mas nem sempre foi assim. A história de relações homossexuais na Índia datam o Período Védico, mas, com a entrada da colonização, novas regras foram impostas. Os ingleses introduziram modelos vitorianos como os conceitos de pecado, amor conjugal e morais sociais específicas.
Mas diversas religiões anteriores acreditavam em formatações mais abrangentes de amor e desejo, como os contos de Krittivas Ramayana, que falava de duas viúvas que “viviam em união e extremo amor” Neste conto, inclusive há um “filho nascido de duas vulvas”. Esse é um dos vários contos hindus que tratam de gênero, sexo e desejo – o próprio Kama Sutra possui trechos de homoerotismo entre homens.
A vivência não heteronormativa indiana hoje está intrinsecamente relacionada aos poderes neocoloniais. Mesmo vivendo em um sistema de estado-nação, a direita e a esquerda do país induzem à ideia de que sexo homossexual é um conceito importado, trazido por estrangeiros, para destruir os valores indianos. O que é comprovadamente uma ideia errada, mas que está fundamentada em propostas políticas, como a manutenção de fundamentalismos religiosos, o comércio do casamento arranjado, a indústria de casamento em massa, além da manutenção de castas e da propriedade privada, entre muitos outros fatores que contribuem para uma sociedade ainda tão desigual como a indiana.
Posições para você testar com o parceiro(a)
A verdade é que, de fato, há certas posições que exigem mesmo uma boa flexibilidade. A maioria delas, porém, dá para praticar tranquilamente, sem a necessidade de um condicionamento físico exemplar. A seguir, sugerimos algumas posições ideais para serem incorporadas na rotina de qualquer pessoa que queira novidades na cama, sem complicações:
O bicho da seda fazendo um casulo: deitada de costas na cama, erga as pernas e abra as coxas (parece o papai-mamãe de sempre, mas a proposta é expor o máximo possível o clitóris a uma forte estimulação). Depois, ponha as mãos nos ombros do par, cruze os pés por trás das costas dele e faça movimentos para cima e para baixo em resposta aos do parceiro. Segundo os ensinamentos indianos, um dos grandes benefícios para a mulher é que, ao manter as pernas abertas, ela pode imaginar que a vagina é uma flor. Então, quando estiver estimulada, deve experimentar visualizar essa flor se abrindo até atingir o clímax.
Posição dos pés erguidos (ideal para estimular o ponto-G): Deitada de costas, dobre as pernas e as encolha o máximo que puder. O par a penetra de joelhos e, como as mãos dele estão livres, pode acariciá-la à vontade. Se ele erguer os seus quadris com as mãos, pode penetrá-la em um ângulo que permite ao pênis estimular a parede vaginal frontal, bem onde fica escondidinho o altamente sensível ponto G.
Gaivotas ao vento: Na maioria das posições com o homem por cima, o pênis penetra por baixo da vagina. Nessa, porém, o pênis e a vagina ficam paralelos, o que intensifica as sensações para o casal. O cara deve se ajoelhar entre as suas pernas e ficar com as costas retas para ter o ângulo de penetração correto. Deite com o bumbum apoiado confortavelmente na beira da cama e, se sua altura permitir, apoie os pés no chão. Dica: o ângulo da penetração muda, mas o clitóris recebe menos estimulação. Assim, cabe a você ou ao par excitá-lo.
Temos de reconhecer: o Kama Sutra é bom para casais heterossexuais, mas, da forma como foi concebido, é pouco útil para mulheres que querem experimentá-lo com outras mulheres.
As posições sexuais a seguir são exclusivas para lésbicas.
Posição digital: Posição preliminar, esta configuração - as duas mulheres frente a frente, uma de joelhos, a outra sentada - permite a mulher que está embaixo de beijar e acariciar os seios de sua parceira, que por sua vez pode brincar com os dedos na língua e boca de sua companheira.
Conchinha: As duas amantes ficam de conchinha. Assim, ambas podem acariciar o sexo da outra e/ou entrar com os dedos. (Esta posição é um pouco menos confortável para a mulher na frente).
Tesoura simples: A Tesoura permite o contacto máximo entre a vagina de ambas as parceiras. As duas mulheres dependem de suas mãos e cotovelos para apoio.
69: Esta posição é muito famosa. As duas mulheres deitam uma sobre a outra, cabeça virada para o sexo de sua parceira...permitindo orgasmos simultâneos.
Rodeio: As duas mulheres ficam deitadas sobre a barriga, uma na outra. A de baixo se arquea com o braço para trás, acariciando as nádegas de sua parceira. A segunda pode, durante enquanto se move sobre a parceira, acariciar os seios de sua companheira.
E não para por aí, o livro Kama Sutra para Lésbicas te oferece mais opções de posições para fazer com sua parceira. Além disso, a Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR). realizou um guia de posições sexuais para idosos, ou para aqueles que sofrem de dor nas articulações. Após tantas adaptações, qual você vai tentar?
Para finalizar, aqui vão algumas curiosidades legais para quem ainda não teve a oportunidade de ler o livro ou se informar mais a respeito do mesmo, são elas:
- O livro contém um total de 529 posições sexuais. Algumas delas exigem bastante elasticidade! O filósofo acreditava que existiam oito maneiras de se fazer sexo, e cada uma delas poderia ser experimentada em oito posições diferentes. Daí as 64 “artes”, como são chamadas as variações no Kama Sutra.
- Ele foi escrito por alguém que não fazia sexo! “A tradição diz que Vatsyayana foi um estudante celibatário que viveu em Pataliputra, um importante centro de aprendizagem. Estima-se que ele nasceu no século 4 e viveu antes de Cristo”, conta a profissional.
- Segundo o Kama Sutra, há dez métodos de beijar. Entre eles, estão o beijo virado, o beijo curvado, o beijo pressionado e o beijo reto. Há ainda quatro formas de executar cada tipo de beijo. Isso significa que existem pelo menos 40 maneiras diferentes de se beijar.
- Tipos de abraços: Ideais para aquecer as preliminares e aumentar o vínculo entre o casal, dividem-se em quatro tipos. O primeiro é o abraço do cipó, em que o homem deve envolver a mulher como a planta faz com uma árvore. Já o da subida na árvore consiste na mulher enlaçar o parceiro com as pernas e subir até o seu pescoço. O do riso ou do gergelim leva o casal, deitado, a ficar cara a cara e entrelaçar pernas e braços, enquanto o abraço da água e do leite envolve apertos e mordidas.
- Vatsyayana previu a invenção do Viagra! O autor sugere que a cura da impotência sexual esteja nesta receita: ferva ovos de pardal no leite e coma-os junto a uma mistura de manteiga com mel. (Um tanto quanto estranho, não acham?!)
- Valorização da mulher: Vatsyayana escreveu que o sexo apenas para fins reprodutivos era algo pertinente apenas ao reino animal, ou seja, a mulher podia, sim, transar por prazer e diversão. Nas páginas, há orientações sobre como os homens podem reconhecer o orgasmo feminino e o que devem fazer para que a parceira o atinja. Em muitas das posições, há estímulo para que a mulher tenha literalmente uma postura mais ativa e dominadora no sexo. Os escritos incentivam a igualdade no relacionamento como fator de felicidade na cama.
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