por Laura Beatriz, jornalista.
Neste texto você conhece mais sobre o surgimento das tradicionais festas de debutantes (sim, os famosos “quinze anos”) e curiosidades acerca do casamento. Além de entender o papel da cultura e do patriarcado nessas celebrações.
Neste texto você entende:
- O impacto do patriarcado nas mais diversas tradições;
- O papel importante da cultura nas construções sociais ao redor do mundo;
- A simbologia por trás das festas de debutantes e do casamento.
Você provavelmente já foi a festas de 15 anos e sabe como a celebração dessa idade é rodeada de rituais e simbologias. Essa ocasião é a oportunidade que a família da chamada “debutante” tem para apresentá-la diante da sociedade.
Como um sinal de que agora aquela, até então menina, se tornou uma mulher. Apta para casar, entre outras obrigações destinadas a mulheres.
Até os dias atuais, a tradicional festa continua acontecendo, mas seus reais objetivos perderam forças, ainda que habitem o imaginário de muitas pessoas. Mas e o patriarcado? Será que entendemos o seu papel na construção dessa atividade?
A famosa festa de debutante
Tudo começou na Europa Antiga, especificamente na metade do século XVI, quando as famílias mais nobres faziam um baile para apresentar suas filhas à sociedade. Tanto que a palavra debutante vem do francês “débutant” e significa iniciante ou estreante.
Também veio com uma espécie de ritual de passagem da infância para a vida adulta no 15º aniversário de uma menina. Depois desse momento, ela poderia usar roupas mais adultas, frequentar reuniões sociais e namorar.
Esse tipo de festividade começou a ter mais visibilidade internacional após a Revolução Francesa, quando uma família nobre fugiu da guerra civil. A consequente migração para outros continentes fez com que a festa se propagasse com mais força.
Na festa, a debutante troca seu vestido usado na recepção dos convidados, para um modelo mais “adulto”, para dançar a valsa com seu pai. As danças realizadas durante a festa variam com os costumes de cada região.
Ao finalizar o baile, as adolescentes tinham a sensação de “liberdade” e podiam até serem apresentadas a pretendentes.
A gastança com os quitutes e com o baile demonstrava o quanto a família podia pagar de dote – uma quantia de dinheiro e bens que a noiva levava ao marido e aos futuros filhos.
No Brasil, as festividades se tornaram populares nas décadas de 50 e 60, quando passou a receber investimentos nacionais, internacionais e particulares para o desenvolvimento da indústria. Aí foi o começo da tradição das festas de quinze anos no Brasil.
O patriarcado
O patriarcado é um sistema de relações sociais no qual prevalece a dominação masculina, uma construção ligada à desigualdade de gênero mundo afora. Segundo um relatório global divulgado em 2022 pela Equal Measures 2030, mais de 3 bilhões de meninas e mulheres ainda vivem em países com declínio ou estagnação no avanço em índices de gênero relacionados aos Objetivos de Desenvolvimento Social (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU).
O Brasil é um deles, ocupando a 78ª posição no ranking que mede o progresso mundial em direção à igualdade de gênero e com 66,4 pontos nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o país segue atrás dos vizinhos Uruguai (31%), Argentina (44º), Chile (49º) e Paraguai (74º). Em 2019, estava em 77º lugar.
Para Gerda Lerner, em “A criação do Patriarcado" (2019), uma definição de patriarcado seria a manifestação e institucionalização da dominância masculina sobre as mulheres e crianças na família e a extensão da dominância masculina sobre as mulheres na sociedade em geral.
A definição sugere que homens têm o poder em todas as instituições importantes da sociedade e que mulheres são privadas de acesso a esse poder. Mas não significa que as mulheres sejam totalmente impotentes ou privadas de direitos, influência e recursos.
Como podemos observar, o patriarcado tem influência direta no fomento de tradições que buscam segmentar e objetificar a mulher. Sendo quase como um produto a ser vendido aos homens. Sempre à sua disposição, sem direito a escolhas, vontades e direitos sobre seu próprio corpo.
Por isso, é tão necessário o diálogo e a educação sobre o assunto, para que as próximas gerações promovam uma cultura saudável de relação entre gêneros.
O papel da cultura
A cultura pode ser definida de várias formas, ela exprime os diferentes modos de organização da vida social, referindo-se tanto à humanidade como um todo quanto às nações, às sociedades e aos grupos sociais.
De acordo com Mello Filho (1988), cultura é o "resultado final das atitudes, idéias e condutas compartilhadas e transmitidas pelos membros de uma determinada sociedade, juntamente com os resultados materiais dessa cultura, isto é, as invenções, os métodos de investigação do ambiente, e o acúmulo de objetos manufaturados".
Sendo portanto o modo como os indivíduos se comportam e expressam seus valores, suas crenças e seus saberes, em um determinado período histórico. A cultura expressa as transformações sociais, históricas, políticas e econômicas que a sociedade sofre.
Não há muito tempo, o homem tinha o direito de controlar a vida da mulher como se ela fosse sua propriedade, determinando os papéis a serem desempenhados por ela.
O homem tinha o dever de trabalhar para dar sustento à sua família, enquanto a mulher tinha diversas funções: reprodutora, dona de casa, administradora das tarefas dos escravos, educadora dos filhos do casal e prestadora de serviços sexuais ao seu marido. Ou seja, estava sempre submetida aos interesses do patriarca.
Apesar das mudanças culturais, muito se observa na atualidade atitudes, ações e falas que remetem ao requerido poder que o sexo masculino demanda ter sobre as mulheres e seus corpos.
É uma realidade que precisa ser analisada com cautela. Afinal, que tipos de mecanismos favorecem homens a terem a certeza de que as mulheres os pertencem?
Liberdade Sexual Feminina
Na família patriarcal, falar de liberdade sexual era algo que nem se pensava, a mulher não podia realizar seus desejos sexuais e profissionais.
Havia tantos pudores na educação sexual das moças que lhes era negado o direito de adquirir conhecimentos acerca da sexualidade antes do casamento. Devido a este tabu, a primeira experiência sexual era vivenciada com culpa e vergonha.
Para Fischer (2001), analisando a relação do patriarcado e da mulher na sociedade, a família e a Igreja ainda tentam impôr o que é certo e o que é errado, apontando o que é considerado bom comportamento e o que é inaceitável para uma moça.
Ressaltando o valor especial atribuído ao casamento e à obediência a padrões e a valores de moralidade estabelecidos e mantidos durante diversas gerações.
Violências sistêmicas contra as mulheres são a manifestação extrema de diversas desigualdades historicamente construídas, que vigoram, com pequenas variações, nos campos social, político, cultural e econômico da maioria absoluta das sociedades e culturas.
Assim como discutimos em outro texto sobre liberdade sexual feminina aqui no blog, é preciso que se tenha o entendimento da palavra “sexualidade”. O termo vem do latim sexus, que significa “gênero, estado de ser macho ou fêmea”, relacionado a secare, que faz referência a“dividir, cortar”. A sexualidade é algo da própria natureza humana.
Para Foucault, o discurso científico sobre sexo, ainda no século XIX, é permeado de ofuscações sistemáticas. O mesmo diz que a sexualidade não é aquilo que o poder tem medo, mas é aquilo que se usa para seu exercício. Sim, exercer a nossa sexualidade pode nos dar poder.
Nas sociedades ocidentais, durante séculos, o tópico em questão poderia ser abordado, mas somente no viés de proibição, algo que não deveria ser feito. Naquela época, a sexualidade mais aprisionava do que libertava.
Mas isso para as mulheres, claro. A liberdade sexual da mulher está longe de se assemelhar à dos homens. São anos e anos de opressão, no qual a virilidade masculina vem sempre à frente da virilidade feminina.
Foi preciso muita luta, muita resistência e muitas mortes para que as mulheres pudessem ocupar o lugar que ocupam hoje e, mesmo assim, muitas ainda são mortas, estupradas e julgadas diariamente por uma sociedade que ainda não está acostumada com a liberdade sexual feminina.
Se engana quem pensa que a liberdade sexual para a é uma pauta nova. A discussão sobre os direitos da mulher faz parte da luta dos movimentos feministas há muitas gerações. O que conquistamos até aqui?
1957: A primeira marca de anticoncepcional foi lançada no mercado dos Estados Unidos.
1962: Mulheres casadas não precisam mais da permissão do marido para trabalhar.
1977: A lei do divórcio passou a vigorar e as mulheres poderiam, finalmente, ser livres quando desejassem.
2002: A falta da virgindade deixou de ser crime. Sim, até o início do século XXI a falta da virgindade era vista como um crime e permitia que o homem solicitasse o anulamento do matrimônio caso descobrisse que a mulher tinha tido relações sexuais antes.
2006: É sancionada a lei Maria da Penha no Brasil.
2015: Aprovada a Lei do Feminicídio no Brasil.
2018: A importunação sexual feminina passou a ser crime.
O Casamento
O casamento surge como a possibilidade de unir famílias, fundir propriedades, promover a diplomacia e expandir territórios. Nesse contrato, as mulheres não eram mais do que moeda de troca. Para levar a terra, leva-se junto à mulher.
Pra que um exemplo melhor de tradição do patriarcado do que o casamento? A cerimônia tradicional, onde o pai leva a noiva ao altar e a entrega, vestida de branco (virgindade), ao noivo, é um exemplo de como carregamos alguns símbolos do casamento.
O bouquet da noiva tem origem medieval. As mulheres levavam ervas aromáticas para afugentar maus espíritos. O uso do véu da noiva era costume na antiga Grécia, para proteger de mau-olhado.
Havia troca de alianças, mas entre as famílias. A cor era diferente: o vermelho, símbolo do sangue novo da nova família.
O vestido de noiva como hoje o conhecemos surgiu com a Rainha Vitória, na Inglaterra do século XIX. Ela usou o primeiro vestido de noiva e também cometeu a ousadia de se casar com seu primo por amor, o príncipe Albert, uma novidade na época. E o pedido de casamento foi feito pela noiva.
Outro símbolo é a tradição de repassar os sobrenomes paternos. Apesar de atualmente não haver mais a obrigação, até poucos anos, o último nome, o mais importante e o que era passado adiante, era sempre o da família paterna.
Alguns casais simplesmente incorporaram a prática sem pensar muito sobre o assunto, simplesmente porque é convencional, enquanto outros abraçaram ativamente a ideia de transmitir os sobrenomes deles.
É possível afirmar que o matrimônio não é mais tido como um contrato financeiro entre pai e noivo — ao menos na nossa cultura, visto que o casamento arranjado ainda é comum em alguns países.
Algumas curiosidades sobre tradições e cultura
Poderíamos falar sobre tradições, patriarcado e cultura por ainda muito mais tempo. Mas selecionamos algumas curiosidades sobre o assunto dentro da cultura do Azerbaijão. Confiram:
- No Azerbaijão, faz parte da tradição local a presença de familiares femininas da noiva para atestar a consumação do "ato físico de amor".
- O papel de "engi": uma mulher casada que vai para a casa dos recém-casados imediatamente após o casamento e fica a noite toda ao lado do quarto. Uma das suas responsabilidades é servir de "consultora", para permitir que a noiva, sexualmente inexperiente, possa sair do quarto e pedir conselhos. A outra responsabilidade é levar os lençóis depois da noite de núpcias.
- Ter que mostrar os lençóis na manhã após o casamento é uma tradição comum no Cáucaso, região entre a Armênia, a Geórgia, o Azerbaidjão e a Rússia. O sangue dá aos parentes prova de que o casamento foi consumado e de que a noiva era virgem. As famílias parabenizam os recém-casados quando veem as manchas de sangue, e, assim, se completa o ritual do casamento.
- Se não há sangue, a mulher é devolvida aos pais como "defeituosa", pode ser excluída pela família ou sofrer perseguição pelos pais. Depois ela é considerada divorciada, e muitas vezes é difícil que consiga se casar novamente.
- Algumas vezes antes do casamento as mulheres são "examinadas" por um "especialista" para verificar se continuam virgens.
Esse procedimento é gradualmente questionado por organizações internacionais. A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) pediram o fim da prática – que ainda é comum em pelo menos 20 países. As duas entidades classificaram a tradição como humilhante e traumática para as mulheres.
Na medicina, não existe o conceito de "virgindade", se trata de um conceito social, cultural e religioso. No texto “Tudo o que você precisa saber sobre hímen e virgindade”, também publicado no blog dos Lábios Livres, te explicamos em detalhes o assunto.
Compreendemos portanto que mesmo nas diferentes culturas e sociedades, com percursos e perspectivas divergentes, as mulheres foram (e são!) desrespeitadas, tendo seus corpos invadidos e suas vontades invalidadas.